Um concerto ou espectáculo é sempre uma experiência que tem um carácter momentâneo muito forte. Sejamos sinceros, um grande número de eventos a que se assiste são uma vivência que acaba por perdurar pouco mais do que aqueles minutos ou horas que vamos olhando para o palco. No Palácio da Foz, Keiji Haino mostrou que será um dos artistas que consegue transgredir esta concepção. São este tipo de engenheiros da criatividade que se tornam especiais e que, após a sua performance, nos conseguem fazer questionar, tentar entender e contextualizar aquilo que se passou.
Durante cerca de 40 minutos, o japonês representou um desafio para cada indivíduo. Quem não estivesse minimamente preparado para o que iria acontecer, terá, porventura, ficado em choque. Quem sabia ao que ia, não terá saído da Sala dos Espelhos incólume e pouco perturbado. Assistir ao movimento de Keijiatravés dos quatro microfones que, simetricamente, posicionou no soalho e de um único foco de luz projectado nas suas costas não foi uma tarefa fácil. Seria fascinante poder questionar cada presente acerca do que sentiu. Certamente, o consenso não iria existir e as opiniões não seriam unânimes. Garantir tamanha disparidade de sensações é eloquente, o que faz questionar se aquilo que colocou em prática não será mais uma experiência de tubo de ensaio do que um concerto.
Despido de qualquer instrumento, Keiji Haino apenas se socorreu da sua voz e dos limites que a mesma lhe impôs. O percurso do concerto foi divergindo por vocalizações respiradas, mais ou menos calmas, gritadas e guturais, ou cantadas, sempre com um tom de exercício em que se objectiva a comunhão com todos, ao mesmo tempo que, de forma incomodativa, cravava uma enxada sonora no tecido corporal de cada um e conferia uma sonoridade desleal para a audição. Incomodativo, desconcertante, sinuoso e perturbante, o músico natural de Chiba trabalhou com as suas composições vocais ofegantes a disposição de todos.
Depois de momentos em que apenas se encontra de pé, a parte final é passada no chão e num jogo entre a vida e o desfalecer, em que o sussurro acompanha este último e o regresso à existência é confirmado com um grito que desassossega, no qual o microfone deixa de ser um aliado. No chão emulava-se e enrolava-se através da sua voz e da utilização da sua própria mão para conseguir criar abafados sons vocais.
Como bom japonês, a despedida foi conferida através de uma vénia. O prometido foi cumprido e cada qual leva para casa, sensações e opiniões tão díspares que irão acompanhar a mente e os poros durante muitos dias após a noite fria em que Keiji Haino esteve em Lisboa.