O que tem Kamasi Washington a mais que as grandes cabeças do jazz de outrora? O hip-hop. Um começo ao contrário. Pelo fruto em vez de pela raiz. Foi a banda sonora da sua adolescência. Aprendeu com Snoop Dog quando tinha vinte anos, ainda mais com Flying Lotus, e há pouco tempo ajudou Kendrick Lamar. O que, neste caso, dá mais do que tira – o rap é uma arte de coleccionismo por excelência. Podemos ouvi-lo e ficar esclarecidos sobre as tendências e experimentalismos de épocas passadas da música negra – dos blues ao soul, do funk aos ritmos tribais -, e demais representações numa escala difícil de definir. Razão do saxofone do norte-americano de túnica e ceptro africanos conter em si diversos temperamentos e texturas e, em particular, de não ser sempre ele a brilhar.
As duas baterias têm o frenesim de Art Blakey e guinadas intrínsecas de modernidade, o contrabaixo o groove e a cadência basofeira do rap, os teclados as investidas desvairadas de Sun Ra e um cheiro intenso às axilas do swing, os sopros (o trombone de Ryan Porter, saxofone-soprano e também a flauta de Rickey Washington, pai do saxofonista Kamasi) têm tanto os gritos libertários de Phroah Sanders como a acutilância de John Coltrane. Há misticismo tribal e africanidade à Joe Henderson, um pouco da sensualidade e do balanço de Yusef Lateef e algumas aventuras acanhadas às trips de Miles e Coleman – e é aqui que surge o classicismo que se lhe fala – , que, aqui para nós, pelo contrário, vem a más horas.
E, afinal, o que tem de menos Kamasi Washington relativamente aos virtuosos do jazz de outras épocas? O virtuosismo. Por escolha ou por engenho? Muito da primeira e algo da segunda, aventamos nós. O saxofonista apresentou os seus sete músicos mais de quatro vezes. O seu saxofone teve tanto protagonismo como as duas baterias, o contrabaixo bamboleante, o teclado desdobrável, a voz teatral de Patrice Quinn, encantando o cenário culminado pelos diálogos eloquentes do trombone, da flauta e do saxofone, cantando ou pincelando murmúrios e queixumes como carícias sonoras. Solos longos de todos os instrumentos: as duas baterias estiveram a sós, e privaram também com o contrabaixo, estes que, por sua vez, acompanharam o teclado num solo longo com epíteto de Angus Young. Washingston destrói um paradigma do jazz ou, antes, inicia outro, mantendo porém cânones passados.
O egocentrismo, fundacional e integrante na música, com enfâse no jazz e restante espectro musical dito erudito, é para no hip-hop competição alicerçada em respeito – uma linha ténue que contém resílias. Reservada aos puros de mente, que conseguem superar sem submeter, aconselhar sem desmentir, espicaçar sem condescendência. Algo palpável terça-feira passada no esgotado e denso Teatro Tivoli: uma competição saudável de virtuosos moderados em palco, uma banda de jazz/funk/soul e não um saxofonista de jazz a solo. Só falta a Kamasi Washington arranjar um nome para a banda e tudo ficará conceptualmente coerente.