“Na minha última passagem por Lisboa, num estranho clube, o Jeremy Irons, que andava pela cidade a gravar o filme Night Train To Lisbon, decidiu aparecer nos trinta segundos finais do meu concerto”, revela Kaki King ao extenso breu que lhe fazia frente. De humor pontiagudo e com uma espontaneidade capaz de remoer tanto stand-up comedian, a norte-americana prossegue o seu inóspito apontamento biográfico made-in Portugal: “Decidiu que me queria conhecer. Entrou no meu camarote e, vocês sabem, o Jeremy tem aquele charme tipicamente britânico, que dá até vontade de beijar. Pegou na minha mão e encostou-a ao seu peito, perguntando como é que eu conseguia tocar assim – isto quando ele apenas viu trinta segundos.” A plateia, que preenche metade do Grande Auditório, gargalha com a sorrateira inconfidência. “Já agora, alguém daqui alguma vez perguntou a uma mulher «quando é que nasce?» apercebendo-se depois de que ela não está grávida? Comigo aconteceu o mesmo, mas num diferente contexto: perguntei ao Jeremy se ele estava vestido com as roupas das filmagens… É que ele parecia saído do século passado.” Soerguem-se os risos. “Ele acabou por me convencer a ir a um bar ali perto, onde estava a tocar uma banda de covers medíocre. O Jeremy dançou bizarramente durante dois segundos e desapareceu. Deixou-me ali. É esta a minha história em Lisboa.” Aplausos. Tempo de retornar às seis cordas.

O encanto das composições de Kaki irrompe por caminhos que ultrapassam a sua (imensa) proficiência técnica – ainda os nossos olhos retornam à escuridão, já a norte-americana desenlaça Bone Chaos At The Castle por entre um slapping tão simbólico de um baixista, mas certamente incomum para alguém que toma de assalto a viola. Se, em álbum, elas, as composições, nos dão visto de residência para os planaltos do sonho, em palco esse idílico mundo dilata amplitudes e envolve o CCB num casulo de daydreams, alheios a qualquer celebração futebolística ou à replicante agenda política. Somos nós, ela e os seus acordes, revelados sob a belíssima Cargo Cult do seu novinho Glow e prorrogados em Kelvinator, Kelvinator, escrita humoristicamente em homenagem a uma marca de frigoríficos.

É esse gracejante tom que faz também com que um concerto deKaki King não se deixe asfixiar por uma solenidade exagerada, acompanhante típica de uma performance do género. Quando nos introduz a Jessica, a mulher nascida em Atlanta abre-nos também a porta da sua vida íntima: “Foi escrita tinha eu quinze anos, para uma tutora de um acampamento que estava apaixonada por mim. Nunca aconteceu nada entre nós, mas, ao longo dos anos, tenho-me cruzado com várias Jessicas e, hoje em dia, estou casada com uma. Portanto, se vocês já vão no vosso oitavo Miguel ou no vosso sétimo Gonçalo, não se deixem acomodar… Pode ser que o próximo seja o certo.” Aluvião de risos, que depressa se aquietam perante a suave voz de Kaki, entregue a uma letra que, de tão simples e inocente, só poderia ser fruto da adolescência.

O jogo de luzes do Grande Auditório respira também ele o árduo tapping de Carmine St. – despretensiosos fogachos de cor envolvem a guitarrista, “camaleando-se” assim que a uptempo King Pizel afronta os decibéis do CCB no seu crescendo. A plateia, sempre num pardo indistinto, vitoria-a com uma ecoante salva de palmas e marca o compasso para o retorno de Frankie Chavez, o músico nacional que acompanha a norte-americana neste seu périplo por Lisboa, Caldas da Rainha e Portimão. Em uníssono, a aliança transatlântica esbate os cerceios do idioma e entrega-se num murmúrio à plácida Night After Sidewalk, composição que provoca a primeira despedida de Kaki.

O retorno faz-se súbito. “Em Espanha nem sequer consigo ser presa. É estranho. Aqui, vocês tratam-me tão bem e eu adoro-vos. Adoro o vosso país”, diz-nos num sorriso, enquanto afina a guitarra para a derradeira The Fire Eater. Clímax liberto numa fluente de perícias várias, abertas a um mundo onde a melodia suplanta o verbo – Belém foi, por horas, novamente porto de utopias.