Como é romântica a morte inesperada. A que ninguém aguarda, a que ninguém vê sugerida pelos búzios, a que jamais ninguém interpreta no advento das escrituras. Cultuamo-la como um sonho de couraça com plumas de real, uma gala onde todos empossam o veludo mais negro e a champagne mais acre. Mark Sandman desfez-se na irrealidade de uma noite quente. Numa Palestrina onde o tempo não avança à espera de Augusto pelo entardecer. Ficou ali para sempre, na metafísica-fantasma que a morte sempre divide entre o real e o mito. À justiça quase poética, Sandman afastou-se pelos corredores de Morfeu – o deus grego que abençoou os Morphine.
Não surpreende que “Journey Of Dreams” caminhe nesse halo indiferente ao terreno. O realizador Mark Shuman confundeSandman com os Morphine – e porque não? Todos os entrevistados, de músicos a managers, da mulher que tão prematuramente deixou ao Joe Strummer que um dia fez questão de o conhecer, gravitam na órbita do malogrado. Que foi dosbluesy Treat Her Right para uns Morphine que poucos, ainda hoje, sabem qualificar. Atiram-se definições, arriscam-se platitudes: uma noite fechada em silêncios de baixo, a paixão translúcida num exausto balcão de Boston, os graves da morte que só nos chamará pelo sono. Os Morphine eram o segredo que todos partilhavam numa paraboloide invisível de intimidade, o oculto que se mostrava sob holofotes magenta sem se deixar identificar, o atalho secreto para a la petite mort que aguardava desde o primeiro dia. Mark Sandman oferecia carne e osso ao misticismo imortal que nos faz acreditar em deuses que caminham disfarçadamente entre nós, transeuntes de uma vida por entender. As entrevistas anémicas em palavras, a reserva quase absoluta sobre o passado pré-Boston, a recusa em admitir a idade que o seu bilhete de identidade declarava – Sandman parecia ter começado in media res, como todos os basiliscos e divindades. Os Morphine o seu o leitmotivpara a descensão à terra.
“Journey Of Dreams” convence-nos por explorar esse lado quimérico de um homem sem biografia, que tinha naquele baixo de duas cordas o passaporte para qualquer fronteira. O resto, as minúcias enquanto banda, as distensões sobre os discos e o vaivém entre bateristas, sabemo-la de outras páginas, de outros filmes, à mão de quem abre a Wikipedia – são detalhes de Trivial Pursuit. Fascinante é o que fica por explicar e Sandman tinha sobre si a sombra, a gestalt que patrulha os indecifráveis; “Journey Of Dreams” humaniza-o – particularmente na relação maior do que a vida que mantinha com a namorada Sabine – sem lhe roubar o eterno secretismo que tanto defendia. Não o idolatra, mas também não omite a lenda escrita em tranches de sonho, que Morfeu quis só para si.