Talvez porque o inverno tarde a ir embora, talvez porque a melancolia é pungente ou ainda porque a nostalgia anda sempre premente. Uma destas três hipóteses – e certamente outras não contempladas – ajudam a revestir de mistério a vida e os seus elementos. Arca d’Água, que fique claro desde já, é um dos elementos misteriosos da vida.

Serão parcas as palavras que expliquem o porquê desta afirmação – afinal, é um mistério – mas diz-me a experiência e a racionalidade de quem já percorreu o mundo e as suas paisagens e sinuosidades às mãos de outras gentes, que será a delicadeza com que se toca. Delicadeza essa que quando transborda é transformada em visão do mundo posteriormente transformado, camada por camada, em música.

Arca d’Água é assim, aos ouvidos deste que vos escreve, uma visão contemplativa de um mundo urbano com necessidade de bucolismo. Com ares de raga e fingerpicker em partes iguais, os 13 minutos do novo 12’’ do trovador do Porto convidam-nos a descobrir a vida a bordo de curiosos e elegantes binómios: cidade-campo, turbulência-paz, alegria-tristeza, angústia-euforia, feio-belo. Estão todos lá à espera de serem descobertos e identificados. Basta-nos a nós, ouvintes e meros mortais, a abertura de espírito e experiência de vida para os reconhecer.

Assim, porque não arriscar que Arca d’Água é um espelho? Turvo, é certo, agitado, sim, mas um espelho. Um reflexo de nós, no interior e no exterior, que convida à contemplação e à descoberta, ao passado e ao futuro, sem esquecer o presente que vivemos. Um exercício simples que esconde um viciante desafio: descortinar, introspectivamente, a brilhante complexidade de um mundo através das notas e cordas de alguém que se oferece para nos conduzir. Como se disse, basta apenas a abertura de espírito para aprender a ver pelas mãos dos outros.