Com a casa vagamente cheia, o Teatro Maria Matos iniciou a segunda edição do Fim-de-Semana Especial, desta vez inteiramente dedicado ao piano.

Antes de a música subir ao palco, um dos membros do TMM fez um aviso e um pedido: sobre a possível compra de obras dos pianistas logo após os concertos chegarem ao fim e que o silêncio fosse a palavra de ordem da plateia durante a actuação de John Tilbury, anulando qualquer aplauso entre as composições.

Não foi por acaso que se pediu que o silêncio imperasse dentro da sala. Quando John Tilbury iniciou a sua interpretação com Tilbury’s Private Joke, logo se percebeu a complexidade do que iria ser ouvido durante a próxima hora. Tilbury não só toca piano, como também o explora e estuda genuina e meticulosamente.  É um homem dedicado à técnica, à ciência que reside na música, no som, na decomposição de notas em partículas sonoras que só se perceberão caso exista uma verdadeira disponibilidade mental.

As seis peças que John Tilbury levou ao TMM são não mais do que composições feitas por Vítor Rua entre o ano de 1997 até ao ano corrente. Como um dos grandes intérpretes actuais da obra do compositor contemporâneo Morton Feldman (e também de John Cage), ninguém melhor do que Tilbury para levar ao palco estas peças de carácter minimalista e «repetitivo».

O pianista revelou que a beleza de um acorde de piano não se prende com o facto de lhe atribuir mais alguma nota mas, pelo contrário, retirá-la. Uma verdadeira demonstração de que «menos é mais», de como as notas se expandem à medida que lhes é oferecido mais espaço devido à ausência de outras notas.  Igualmente, durante a interpretação da peça Whistle piano ITilbury provou, através do assobio, como é possível dar continuidade à ressonância das cordas do piano, aumentando a sua tonalidade sonora ou, contrariamente, diminuindo-a. O intérprete claramente desvendou a potencialidade de um piano, usufruindo de todas as suas estruturas e materiais para fazer da «experiência do som» palavras-chave da sua actuação. Chegou ao ponto de se levantar durante uma das peças e, utilizando um objecto cilíndrico peculiar, fez uma série de batuques em gestos repetitivos sobre o piano à medida que o contornava. Neste momento conseguiu-se concluir a mensagem de Tilbury, mesmo que se repita a mesma nota, o mesmo gesto, o mesmo acorde, nunca o som será exactamente igual. «Quanto mais repito menos me repito», palavras do compositor La Monte Young que descrevem na perfeição o que o pianista fez.

Há algo que se pode concluir, sem hesitações, sobre a prestação de John Tilbury ao piano: ele é um teórico da música, um conhecedor inato da ciência que reside escondida atrás do que é belo. Sem dúvida, ofereceu ao público a experiência de reconhecer a naturalidade do som, a sua profundidade e a maneira como está infiltrado no nosso quotidiano. Tilbury brindou-nos com a «teoria do piano», como se fosse um professor em pleno ensaio, para percebermos afinal o que se iria passar neste “fim-de-semana de pianos” feito pelo TMM.

Após a saída de John Tilbury digna de um vórtice de aplausos e de um curto intervalo, Dustin O’Halloran apareceu sobre o palco de sorriso na cara e imediatamente se antecipou diante do piano. O compositor desde logo revelou o cunho emotivo das suas peças e a sua frescura leniente.

Inicialmente, tocou duas obras do seu primeiro trabalho que, tal como o compositor californiano e residente em Berlim nos explicou, são fruto de uma estadia no campo em Itália. Foram estas mesmas obras que o lançaram para a carreira de pianista que «teve origem na obra do acaso», O’Halloran não tencionava seguir este caminho. A brandura, a mescla de tons límpidos que o acompanhavam, o suave balancear do seu tronco e as estadias intermitentes de olhos fechados são a prova da sua envolvência com a música.

Aproveitou uma primeira pausa para estabelecer algum contacto com o público. Durante toda a sua actuação, várias vezes se direccionou para a plateia, ora agradecendo, ora fazendo pequenas introduções sobre as suas peças. As composições que se seguiram integravam o seu mais recente trabalho – Lumiere – que será lançado já na próxima segunda-feira (7 de Fevereiro).

Dignas de uma carga emocional mais intensa, desde logo deram indícios de queDustin O’Harollan sabe perfeitamente transportar sentimentos e sensações para dentro de cada nota que se ouvia na sala do TMM. O músico partilhou com o público o sabor da cor aliada à harmonia das suas composições, principalmente porque utilizou como pano de fundo a vídeo-arte de Christina Vantzou, criação especial da artista dedicada ao álbum Lumiere. As mudanças de cor, de textura e a rapidez do vídeo apareciam constantemente ao mesmo compasso que a música, elevando-nos para o universo da cor e do ritmo como transportes da consciência.

Uma das suas últimas peças foi provavelmente a mais ansiada pelo público. Opus 23, a melodia que integrou a banda sonora do filme Marie Antoinette de Sofia Coppola, foi um dos picos mais altos de toda a sua actuação. Se se pode dizer que há músicas que nos levam a fantasias oníricas como passear pelas nuvens num final de tarde envolvido por tons laranja, então esta é definitivamente uma delas. Uma das obras que, segundo os espectadores, mais aplausos mereceu.

Digno de uma ovação parcialmente de pé, Dustin O’Harollan foi “obrigado” a regressa para um encore que encerrou a primeira noite de pianos no TMM. Duas junções dicotómicas – a «teoria» de John Tilbury e a «emoção» de Dustin O’Harollan – que não deixaram de fazer todo o sentido para se compreender afinal no que consiste um piano e até que ponto se pode fazer dele uma forma de devaneio, ritmo, ciência e música.