A edição de 2011 do IndieLisboa chegou ao fim e há muito para contar sobre o que por lá se passou este ano. A contagem final foi feita no passado sábado na habitual cerimónia de encerramento onde ficámos a saber todos os premiados. Uma vez mais a música esteve presente no festival, muito bem representada na tela e no palco, com a particularidade de o Grande Prémio “Cidade de Lisboa” deste ano ter sido atribuído a um filme intimamente ligado ao universo musical, mas não só.

Dois vencedores, dois documentários

Coincidência ou não, a verdade é que os dois prémios mais importantes do IndieLisboa foram este ano atribuídos ambos a documentários. Na competição internacional o vencedor foi The Ballad of Genesis and Lady Jaye, de Marie Losier, que valeria sempre a pena destacar, fosse ou não premiado. Desde logo porque retrata a vida artística de um músico precursor do género Industrial e indissociável do seu nascimento. Mas, principalmente, porque é uma obra de rara beleza, visualmente estimulante e com uma carga simbólica tremenda. Através dele ficamos a conhecer intimamente uma parte importante da vida de Genesis Breyer P-Orridge (cujo nome de nascimento é Neil Andrew Megson), ligado à música desde criança e com formação musical em diversos instrumentos. O artista conduziu bandas seminais do Industrial como COUM Transmissions, Throbbing Gristle ou os mais recentes Psychic TV, ainda no activo. Assume ter William S. Burroughs e Brion Gysin como importantes referências artísticas, com os quais já colaborou, e admira o trabalho que projectos como Cabaret Voltaire ou Nine Inch Nails fizeram pelo género musical que ajudou a germinar. Contudo, é o amor transgressor que irremediavelmente o aproximou de Lady Jaye que torna o filme especial.

Enquanto adolescente, Jaye viveu numa casa ocupada, entrou numa escola de enfermagem enquanto à noite actuava regularmente como dominatrix e outras figuras antónimas do estereótipo feminino e opostas à sua determinação biológica. Mais tarde, durante o relacionamento com Genesis, acaba por se tornar também sua parceira artística e integrar a sua banda Psychic TV. A certo ponto, Genesis e Jaye decidem, no lugar de ter um filho, recorrer à cirurgia para se tornarem fisicamente mais semelhantes. Esta ligação apaixonada e interminável é efectivamente o epicentro deste excelente documentário realizado com mestria e criatividade, repleto de planos inquietos, quase esquizofrénicos e que, para além do aspecto biográfico, nos oferece uma visão sobre a vida que desafia estereótipos, absolutamente fracturante, revelando uma insólita busca pela singularidade que transcende quaisquer limites de normalidade.

Ainda no capítulo dos galardões, o feliz contemplado a nível nacional foi Linha Vermelha, de José Filipe Costa, que consiste numa reconstrução a partir do filme Torre Bela, de 1975, realizado por Thomas Harlan e cujo trabalho foi marcante no pós 25 de Abril, registando um dos mais importantes movimentos de ocupação de terrenos por cooperativas agrícolas. José Filipe Costa procurou fazer em torno da Herdade da Torre Bela um retrato complementar da ocupação de 75, mais distanciado e muito bem documentado, recorrendo ao testemunho de alguns dos intervenientes o que permitiu um aprofundamento mais rigoroso. Visualmente hábil na apresentação de inúmeras gravações sonoras, compensando inventivamente a ausência de imagens, o filme procura mostrar o poder do cinema na transmissão de mensagens, por vezes permitindo ao espectador apreciações distantes da realidade e sublinha ainda que o aparentemente simples registo de imagens não é alheio aos acontecimentos e que de certo modo actua sobre o seu curso.

Contudo, a grande valia deste trabalho é a exposição da força da iniciativa nesta “experiência” de autogestão, da rejeição da ideia de propriedade privada, de uma cultura “faz tu mesmo” onde se observou uma horizontalidade e transversalidade sociais inspiradoras. Citando palavras actuais de um dos ocupantes, “se havia motivos para a ocupação e a existência de cooperativas na altura dos duques, hoje há ainda mais”.

IndieMusic: dos palcos para o grande ecrã

No capítulo da música, o grande destaque foi o concerto deTindersticks na Aula Magna, cuja reportagem pode ser lida em pormenor aqui. Na tela pudemos ver os Broken Social Scene emThis Movie is Broken, obra de ficção que conta a história de um jovem casal no preâmbulo da paixão e que gira em torno da actuação da banda canadiana em Toronto. Não sendo absolutamente inovador, o conceito é de facto criativo mas podia ter tido outra concretização. Ficamos sem saber se foi intencional ou não, mas a verdade é que a trama entre Bruno e Caroline nunca chega a ter grande densidade, mas o que importa reter do filme são de facto os momentos em palco dos Broken Social Scene, que transbordam boas vibrações e transpiram simplicidade e amor pela música numa actuação bastante orgânica.

Com o filme Lemmy tivemos a oportunidade de conhecer de perto o vocalista e baixista dos Motörhead, banda pioneira do Heavy Metal. Lemmy Kilmister é um ser rock’n’roll até ao osso, um predestinado para estas lides. O filme reúne o testemunho de dezenas de figuras do mundo da música e de forma ritmada mostra-nos Lemmy na sua vida quotidiana, seja a desfrutar de videojogos, no estúdio em gravações, em casa a cozinhar ou no bar que frequenta religiosamente. De miúdos em descoberta da música pesada a nomes consagrados do universo musical, como Ozzy Osbourne, James Hetfield, Lars Ulrich, Robert Trujillo e Kirk Hammett dos Metallica, David Ellefson dos Megadeth, Scott Ian dos Anthrax, Alice Cooper, Peter Hook dos Joy Division/New Order todos se mostram fãs de Lemmy e admiram tanto o músico como o homem e a sua postura honesta e natural perante a vida. CM

A agonia de Phil Spector

Phil Spector foi protagonista de mais um dos filmes da secção IndieMusic. The Agony and Ecstasy of Phil Spector, ainda que tenha como cerne o processo de julgamento em que o produtor e músico norte-americano se viu envolvido em 2007, como suspeito da morte da actriz Lana Clarkson, é um interessante retrato biográfico. O filme de Vikram Jayanti intercala imagens do julgamento com entrevistas ao lendário produtor de Let it Be (o último álbum dos Beatles) – um longo depoimento do próprio sobre o julgamento, a sua vida pessoal e profissional – e ainda trechos dos maiores êxitos da sua responsabilidade, acompanhados em legenda por alguns comentários críticos.

Em suma, a ideia com que se fica é que, na vida de Phil Spector, não existem momentos de êxtase sem agonia nem momentos de agonia sem êxtase, para usar as palavras que dão título ao filme. Neste contexto, não há como esquecer o momento em que é abordado o assunto das famosas fotos do seu penteado peculiar – afinal, uma assumida homenagem a Einstein – que percorreu o mundo por razões que a foto acima descreve melhor que quaisquer palavras. É o mesmo Phil Spector que nos agoniamos de ver, nervoso, de mãos tremulas, agoniado e expectante em relação ao resultado do julgamento, que nos faz rir à gargalhada com a extravagância que, na lente daquele fotógrafo, se tornou completamente tonta.

Outra das conquistas do filme é deixar a impressão de que Spector compôs, ao longo de uma carreira que dura já desde o final dos anos ’50, a banda sonora perfeita para a sua história, de uma agonia solitária envolta em génio, sucesso e admiração, mas sobretudo em muita controvérsia e num sentimento de frustração perante a inevitabilidade das coisas, de que nunca conseguiu livrar-se, isto até ao dia em que foi preso e considerado culpado. LP