«Sou Luaty Beirão, filho de João Beirão». Inicia assim o comunicado em vídeo disponibilizado no Youtube, onde fala directamente para o presidente angolano e explica as duras palavras dirigidas ao seu governo num concerto de Bob Da Rage Sense, em Luanda. Explica, também, ao referir o nome do seu pai, que é o que «apelidam» de «um filho do regime», sendo o pai o primeiro presidente da FESA (Fundação Eduardo Dos Santos). Compara-se, num dos seus “mptrechos”, a Amílcar Cabral, pela contradição «juventude abastada, posição radical» (“Palavras Serão Palavras”). Posição que, após o caso de 27 de Fevereiro de 2011, cujas imagens em vídeo captadas do concerto se tornaram virais, o pôs à prova com o início de perseguições, ameaças, espancamentos e o desaparecimento de pessoas com quem partilhava a luta.

A temperatura era ainda mais quente em Angola após as aspirações trazidas pela “Primavera Árabe”, nesse verão de 2012 em que Luaty Beirão viajava para Lisboa. Era Junho, em Setembro haveriam eleições em Angola. O clima, lá fora, era-lhe hostil. No interior do aeroporto 4 de Fevereiro, em Luanda, o seu passaporte estava barrado. Depois de espera, desconfiança e nenhuma explicação conseguiu embarcar. À chegada a Lisboa já a polícia portuguesa o aguardava por causa da cocaína enfiada na roda da sua bicicleta. Uma quantidade de droga elegível a tráfico internacional, o activista angolano saiu com termo de identidade e residência.

Cada vez mais, desde 2011, o activismo cívico-político domina a vida de Luaty Beirão. Como rapper, tal como afirma, sempre se movimentou dentro de um nicho inserido algures no interior de um outro, já de si pequeno, do mercado do rap lusófono. Ainda que assim não fosse, seria quase impossível a Ikonoklasta (ou Brigadeiro Mata-Frakuz) algum dia ter uma carreira cintilante como músico (salvo no seu nicho). O que em muito se explica nos versos que profere, numa admitida «autocrítica» que é uma crítica directa à «elite artista», no poema “Morte do Artista”. Este, resumidamente, deixa uma questão que permanece retórica: «O mundo está a morrer/ É o dinheiro que é o carrasco/ Mas sem ele não há instrumentos nem viagens, nem espetáculos/ A editora é chuladora mas todos querem um contrato/ A rádio só é uma porra se não for o artista o playlistado/ Os festivais só levam boca enquanto não é convidado/ Mas quando chamam, corre, toca, e até toca sem ser pago/ Tá bonito? O artista faz o som e aí termina o activismo?»

Todos estes temas, incluindo a improvável viagem à boleia de Portugal a Angola, encontram-se abaixo aprofundados, em resultado de uma conversa de quase uma hora, acolhida pelo backstage do MusicBox, na qual doravante os esforços ficarão sempre franjas soltas. A mesma casa em que fará uma das poucas aparições ao vivo (a 5 de Dezembro) que a sua luta ainda permite, a solo e com o conjunto afro-house Batida.

Vi que tiveste ultimamente problemas para sair de Angola. Parece que se inverteram um bocado as coisas: antes não não te queriam lá e mais recentemente não te queriam deixar sair… Bem, isto só para te perguntar, como correu a viagem?

Para cá agora foi tranquilo. Eles meteram um bloqueio no meu passaporte, ou seja, para eu sair tinha de comunicar ao Ministério do Interior, tinha de ser o ministério a dar autorização de saída. Para criar aquele problema que depois deu cá – enfiarem-me a droga na roda… Aquilo é para te fazer sentir que te metes com o regime, vais sofrer pressões e vais ver todo o tipo de portas fechadas e vinganças infantis. Isso sucedeu-se mais três, quatro vezes, até que da última o próprio ministro do Interior interveio e garantiu que se ia revolver. Antes de vir para cá, fui para a África do Sul e constatei que de facto já não havia bloqueio.

«Quando viajo sozinho, só mochila, sempre mochila.»

Os comunicados que já fizeste (alguns, a avisar que vais viajar para Angola) através do Youtube são como pequenos seguros de vida?

Mais ou menos. Foram nessa altura, justamente depois da cena da cocaína. Aquilo foi tão grave que dava para entender que eles não me queriam lá na altura das eleições. Eu decidi não lhes dar esse prazer, sobretudo porque o juíz me concedeu a graça de poder continuar a fazer a minha vida normalmente, à espera que o processo avançasse. E então fiz o anúncio para tornar público que ia voltar, se acontecesse alguma coisa na fronteira… Só para o pessoal estar alerta.

Dois anos volvidos e ao digitar “Ikonoklasta” no Google ainda são sobre o episódio da cocaína a maior parte dos resultados. Quais as realidades que se abateram sobre ti ao deparares-te com essa situação?

Estão-me sempre a lembrar de que sou uma pessoa com muita sorte… Eu digo que a sorte, também, a gente faz, constrói e procura. Porque a PJ ouviu as minhas alegações e foram procurar na internet, não é? Digo que sou perseguido pelo governo angolano, que no aeroporto, lá, me avisaram…  Se eu não vivesse esses últimos anos a denunciar tudo o que me acontece, muito provavelmente não estaríamos os dois aqui, ias ter de me visitar a Caxias. São sete, oito anos por aquela quantidade de cocaína. Logicamente que se tem a noção da gravidade. Mas quando se revolve; e o resultado é até inédito – a senhora escrivã ficou completamente espantada: «eu trabalho aqui há vinte anos e nunca vi uma pessoa sair assim»… Claro que foi um abanão, uma pessoa ter noção que de repente pode perder x anos da sua vida, trancado, por algo que não fez. Há por esse mundo fora milhares de histórias de pessoas que estão presas injustamente. Mas pronto, meu… Tento que acabe por ser mais um episódio e como, felizmente, saí bem dele, é mais uma das coisas que uso para me defender. Para me dar credenciais, se voltar a acontecer alguma coisa, uso esse historial para me proteger. Tem essas duas coisas: continuo a ir às ruas, a falar do regime e vivo lá; ao mesmo tempo, é uma cena que pesa na cabeça da pessoa – agora nunca viajo com bagagem de porão. Desta vez vim com a bebé, não tem como. Quando viajo sozinho, só mochila, sempre mochila. Mesmo que eu tenha a noção de que eles não voltem a tentar a mesma coisa, seria estúpido demais fazer o mesmo golpe.

Observando de fora, diria que é nesta altura que mais vincadamente abraças a tua vertente política como activista, relegando para segundo plano a de rapper.

Sim, é uma observação justa. Houve algumas coisas que aconteceram desde 2011 que me fizeram deixar um bocado a música e empenhar-me nisso. Para já, é mais urgente. Sinto que posso ser muito útil nessa vertente, por varias coisas: vivi em muitos sítios do mundo, tenho uma abertura grande a nível de conhecimentos e troca de experiência com outras realidades, fui priviligiado a minha vida toda… Então, sinto que posso usar esse privilégio para um bem maior do que a minha própria vida. Também senti que a minha criatividade iria estar muito condicionada por isso, às tantas ia-me tornar repetitivo. Quando fiz aquela cena no concerto do Bob, uns dias depois aquilo acabou no Youtube e começaram logo os telefonemas com pressão: «sai de casa!», «estão-te a ir buscar!»… Aí, começou o rebuliço, e comecei a dedicar-me mais a essa vertente. Mas depois há outro episódio que condiciona ainda mais o meu tempo, que é o nascimento da minha filha. A partir daí tenho outro tipo de prioridades. Eu adoro música, sempre fiz música de maneira descomprometida. Nunca pensei em ter discos, tenho noção do mercado lusófono, não quis entrar naquela lógica de ver o que o mercado quer, mesmo no meu nicho; ter de acompanhar as tendências, associar-me a editoras, esse tipo de regras que imperam na indústria. Também nunca fui muito solicitado por editora nenhuma. Tive a cena com Matarroa, com o Conjunto Ngonghuenha, foi uma boa experiência porque o Martinêz é um gajo bué porreiro. A minha cena da música sempre foi mais um escape, uma espécie de diário onde eu ponho o que se passa na minha cabeça turbulenta. Foi sendo relegada para plano secundário, mas adoro a música, quero continuar a fazer. Mas tenho plena noção que, neste momento, prioridade é bebé e a minha luta… Política, podemos dizer.

Tudo isso decorre do movimento democrático de que fazes parte em Angola e que, em 2011, aproveitando as brisas trazidas da “Primavera Árabe”, tentou mobilizar a população para destituir o presidente no poder há mais de trinta anos. Alvos de uma repressão violenta, com relatos de tortura e desaparecimentos. Quais achas que são os maiores entraves ao sucesso de uma situação similar à da Tunísia ou da Líbia em Angola (ou Moçambique)?

Se eu tivesse de isolar um elemento principal seria o nível de escolaridade, de awareness, dos cidadãos. Durante muitos anos vivemos em guerra, depois da anti-colonial veio a guerra civil, as prioridades nunca foram educar as pessoas. A guerra acabou em 2002 e a prioridade continua a não ser educar as pessoas. Basta ver a distribuição do nosso OE, para ter a plena noção de que a educação e a saúde são preocupações completamente secundárias. Teria de comparar o nível de literacia e de educação com esses países do norte de África. Quando as pessoas percebem onde reside a legitimidade da soberania, existe uma transição de mentalidade e a perda do receio de cobrar aqueles que deveriam ser seus representantes e não seus patrões; há essa coisa do chefe. Enquanto houver isso há o medo. De perder o emprego, da pressão, de perder a vida… Quanto a Moçambique, existe irmandade nos métodos de repressão. Na dimensão em que são aplicados. Acho que aí reside a diferença. O nível. Nós temos uma coisa que é: se revolves falar, independentemente de seres tu sozinho ou um grupo de dez ou de quinze, vais sofrer consequências físicas disso.

«Uma mulher que tinha um bar e agora tem um império mundial… É mais do que uma que história de sucesso.»

E relativamente às duas pessoas (Alves Kamulingue e Isaías Cassule) pertencentes ao movimento democrático que integraste e estavam desaparecidas?

Foram mortos. Assumidamente, os corpos não apareceram mas as pessoas que mataram admitiram e estão agora a ser julgadas, entre aspas. Ali, é um país de faz de conta. Uma pessoa que admite um homicídio é promovido a general. Há coisas que não fazem sentido nenhum e para explicar seria precisa tanta contextualização que ficaríamos aqui dias inteiros. Um deles, meteram-lhe um saco na cabeça e puseram-no no porta-bagagens, quando o tiraram, logicamente, tinha morrido asfixiado. É o que eles dizem que fizeram. O outro, com dois tiros, e disseram que atiraram o corpo aos jacarés. Há também o caso de uma jornalista guineense, em 2012, que tinha uma opinião crítica em relação à posição de Angola na Missão Missangue na Guiné-Bissau, um belo dia desapareceu e nunca mais se soube dela. Com ela não houve tanta pressão como com os dois jovens. Com eles houve manifestações, diálogos com o governo, forçá-los a comprometerem-se a investigar, até que se chegou a essa conclusão.

«Acreditava mesmo que podia chegar a Angola e acontecer-me uma coisa muito má.»

Com que olhos vês as recentes relações entre Portugal e Angola? Nomeadamente as movimentação para o interior  dos meios de comunicação social portugueses. E a aparição invariável do nome da mulher mais rica de África em negócios relativos a vários sectores da economia portuguesa.

A maior parte dos angolanos não gosta disso, porque sabe muito bem de onde vem esse dinheiro. Uma mulher que tinha um bar e agora tem um império mundial… É mais do que uma que história de sucesso. Enriquecimento TGV, toda a gente sabe de onde vem esse dinheiro. As relações não são tanto entre Portugal e Angola, são mais entre essas cúpulas de endinheirados e apoderados; a cúpula do poder aqui, os cleptocratas de lá. Que se entendem, sem querer saber dos seus povos. Há angolanos que gostam, acham que é colonização invertida, «agora somos nós a mandar», muito orgulho. Mas, sinceramente, esses para mim nem contam. Fico espantado é com a apatia do povo aqui, sobretudo por parte da juventude. Se me perguntares o que poderiam fazer, também não sei. Também há a questão da informação. Está-se a comprar tudo,o grupo da TSF. Vem gente, empresários endinheirados angolanos que, no fundo, são “testas-de-ferro” da mesma gente de sempre. E isso é perigoso. O que é que eles estão a comprar? Os sectores importantes: energia, comunicações, imprensa… Aí, o poder está na mão destes poucos endinheirados, não de Angola, dos dois, e que querem que não se fale de certas coisas. Nos bastidores começam-se a passar coisas, o caso do Pedro Rosa Mendes até agora foi o mais flagrante, mas há outros exemplos até mais recentes que podem ser discutidos, mas que não são tão descarados.

Voltando atrás no tempo, à música que partilhaste com o MCK em 2006, “Duas Faces Da Mesma Moeda”, em que desmistificam as ideologias dominantes. E, uma vez que és uma pessoa politicamente activa, como te definirias nesse sentido?

Eu não tenho um conceito novo para dar, mas teria de ser uma alguma mistura, logicamente de esquerda, entre a anarquia e laivos de comunismo, mas também tenho ideias de mercados abertos… É complicado limitar-me a uma coisa só. Mas sem dúvida que eu sou mais pro-social, falta de hierarquias de superioridade, não ter só partidos a representar toda uma população… A palavra não sei.

Qual o valor simbólico e quais as repercussões da música “Sou Um Kamikazee Angolano E Esta É A Minha Missão”?

Essa música fiz em de 2004, usei um instrumental do Nas, “Got Ur Self a Gun”. O vídeo que está no Youtube é posterior, foi gravado em 2012, para o Canal Q. Eu disponibilizo álbuns na internet, chamo-lhe “mptrechos” e o primeiro foi em 2004, e tinha essa música. Eu gravei aqui, e sinceramente pensei que aquilo pudesse significar o meu fim. Acreditava mesmo que podia chegar a Angola e acontecer-me uma coisa muito má. Mas não aconteceu. E aí a pessoa fica: «há alguma liberdade de expressão, não é assim como a gente a pensar». Está aí a música, não toca na rádio mas as pessoas ouvem, vou a concertos (pequenininhos, de 100 pessoas) e toco-a. Quando cantei ao vivo lá, a primeira vez, fiquei à procura de onde poderia vir o golpe ou a bala.

A tua faceta política manifesta-se em tudo o que fazes, já o referiste anteriormente. Fazendo uma retrospectiva, em qual faceta obtiveste maiores repercussões resultantes de acções de carácter político? Como rapper ou activista?

Sem dúvida, enquanto activista. Eu nunca procurei sucesso, conquistar espaço. Lá em Angola se queres ter a tua música a passar, tens de pedir favores ou pagar. Eu nunca entrei nesses filmes, a minha música sempre foi circulada em meios muito pequeninos – eu pelo menos tinha essa noção –, os concertos que fazíamos sempre foram em espaços pequenos (200 pessoas no máximo). Então, acho que, sem dúvida, as pessoas começaram a conhecer-me muito mais a partir de 2011 como activista do que como músico. Incomparavelmente.

«Quando se mostra África é: os conflitos, as guerras, as doenças, as moscas em cima dos bebés. Eu tenho plena certeza de que África e os africanos são muito mais do que isso.»

A tua carreira enquanto artista caracteriza-se pela ausência do material (não lanças discos), não dependendo assim financeiramente da música, como forma de preservar a arte. Esta é a tua visão? Uma ruptura abrupta com o comércio ou a tua chave para lidar com essa realidade?

Muita dessa rejeição do comércio tem que ver com a noção de que tu não podes ser tu, plenamente, a partir do momento em que aceitas comercializar a tua música. E ter alguém que faça isso por ti, trate da tua imagem e de arranjar concertos. Passas a ser não só tu, mas a ter uma linha de pessoas que gravitam à tua volta e vai tirar dividendos disso. Então, todas essas pessoas vão acabar por influenciar a tua arte. E, também, o não existir perspectiva de realmente crescer. O mercado em português tem realidades muito específicas, e eu não tenho uma linguagem muito simples, popular. Não vou fazer as coisas para chegar mais longe, não estou disposto a passar por essa relação. O que é que vou fazer se tiver um disco? Vender 1000 cópias, ter três, quatro concertos por anos? Vou entrar em frustração. Eu não quero sentir que vá depender da música, quero que ela continue a ser o meu escape e a minha maneira de me exprimir. Não vou fazer disso o meu objectivo.

Existem planos musicais para os próximos tempos?

Eu não tenho planos, meu. [risos] Vou aceitando convites. Se acho a ideia atraente o suficiente para dedicar tempo a isso ou não. Já tive quase um álbum escrito mas depois faltou-me o ânimo de procurar os instrumentais e não sei quê… E instalou-se, tanto aqui como lá, uma cena muito mercantilista do «beat custa tanto». Fui deixando isso para segundo plano, muitas letras têm mais de dez anos. Já tive ideia de fazer um álbum, muito por causa da pressão dos amigos. Tenho muitas letras, muitas coisas, mas não posso dizer que tenha uma agenda definida. Tenho cinco “mptrechos” para sair que são coisas nunca editadas, ou participações que estão espalhadas em álbuns de outras pessoas, tipo Sir Scratch ou Verídiko. Coisas novas, acontece. O ano passado convidaram-me para duas coisas e gostei dos projectos, porque eram de miúdos bué empenhados e vinham de sítios improváveis, ou seja, um do norte e e um do sul de Angola. E têm qualidade. O Nu Se Mete Lá e o outro, de Benguela, Fortificando A Desobediência, e que tem uma compilação com o mesmo nome. Se para o ano aparecer algo similar, eu vou considerar fazer, mas um plano musical estaria a mentir se dissesse que tinha.

Gostava que nos falasses, brevemente, dessa espécie de reality check à humanidade que fizeste ao viajar à boleia de Lisboa até Luanda.

Acho que resumiste muito bem, a expressão seria mesmo essa. Quando vivi em Inglaterra conheci uma rapariga que me inspirou bué. Uma miúda muito baixinha, viajava Inglaterra toda, nunca pagava. E eu fazia as perguntas que toda a gente faz, «não tens medo?», aquelas coisas que se veem nos filmes, os hitchhikers são sempre raptados, mortos, esventrados, e nunca mais se sabe deles. E experimentei fazer isso – quando fui viver para a Holanda e tinha de vir ao casamento do Martinez. Nem tinha mochila, ia mesmo com aquelas malas com rodas. De Amesterdão fui para Praga, depois fiquei em Budapeste, cinco dias em cada. «Funcionou de Amesterdão até Budapeste, vamos experimentar o resto». Cheguei a Lisboa em cinco dias. Essa experiência catapultou a vontade de fazer essa viagem pelo meu continente. Tinha acabado os estudos, era o momento ideal – se eu não fizer isso agora não vou fazer nunca mais, e eu já tinha decidido voltar para Angola. Ai, e os leões, e as cobras, as doenças, não sei quê… Eu prefiro forcar-me naquilo que a imprensa não foca. Quando se mostra África, são as desgraças. Os conflitos, as guerras, as doenças, as moscas em cima dos bebés. Eu tenho plena certeza de que África e os africanos são muito mais do que isso. E tinha tanta a certeza que fui sem dinheiro. Fui com 150€. Só fui constatando isso e ficando ainda mais surpreendido. As pessoas iam muito além daquilo que eu já sabia que ia ser. Pessoas que não têm nada, vivem em cubatas mas desdobram-se para te dar refeições quentes e teres água para tomar banho. E tu sentes que já estás a ser pesado. Mas não te querem deixar ir embora. É genuíno. Isto é África, mas eu acho que é algo geral à humanidade. Na Europa eu achava que as pessoas iriam ser muito mais medrosas, no sentido de a vida ser mais rápida. Existe mais essa noção de que alguém cobiça o que tu tens, mas tive grandes surpresas. Eu acho que há esperança na humanidade. As pessoas que querem fazer o bem não têm espaço. São rapidamente sugadas e aproveitadas e pisadas por aqueles que são oportunistas, que as usam para atingir os seus objectivos e as mantêm anónimas.

Fiquei muito enriquecido com essa experiência, eu sabia que ia ser assim. Engraçado é que consegui passar o continente inteiro e só ser assaltado em Luanda, a dois quilómetros de casa. Mais engraçado ainda é que fui assaltado num bairro onde tenho amigos e no dia seguinte foi lá um deles e conseguiu recuperar a câmara fotográfica (não levava praticamente nada comigo) e tinha fotografias dos ladrões, que já tinham andado tirar fotos na festa. [risos] Faltam-me as palavras, mesmo, para descrever essa experiência.

Alguma mensagem para os tugas que cá estão ainda a passar mal?

Não ficar constantemente a focar no que está nublado. Este é um país onde as pessoas são fixes, é preciso encontrar o bom nas pessoas, e juntar essas boas energias. Porque mesmo quando alguém está na merda, se tiver um bom espírito, atrai outras, desde que não venham para sugar. É assim que as coisas acontecem. Sobretudo a juventude: não se deixem abater por essa fase.