Apesar de se ter iniciado com um ar solene e tom intimista, não seria essa a nota dominante da noite. Mesmo sentado ao piano, as tiradas bem-humoradas de Howe Gelb indiciavam que a coisa rapidamente iria ‘descambar’ (no bom sentido, claro) e assim foi de facto. Não foi preciso esperar muito para que a voz dos Giant Sand abandonasse o elegante piano de cauda e empunhasse uma guitarra para encarnar o papel de um hillbilly (uma transformação que só ficou completa quando um boné de camionista entrou também em cena). “Good luck suckers” foi o mote cantado alto e bom som e, durante uns bons minutos, o pequeno auditório do Centro Cultural Vila Flor deixou para trás os ambientes sofisticados e entregou-se à sonoridade country das raízes rurais de Gelb.

Carismático em todas as intervenções (seja a gabar o ‘nosso’ bacalhau ou a desabafar sobre o simples prazer do silêncio), Howe Gelb foi um excelente anfitrião e, na verdade, ninguém sentiu falta da sua banda. Sem repetir fórmulas, o veterano alternou entre os seus dois instrumentos de eleição e tocou essencialmente temas retirados de Tucson e de Snarl Some Piano, o mais recente trabalho dos Giant Giant Sand (uma expansão dos Giant Sand) e o seu último álbum a solo respectivamente.

Para quem não sabe, Gelb é um homem de canções tradicionais, mas a sua criatividade não abdica de algum experimentalismo. Isso pode ouvir-se em disco e presenciar-se em palco, mas ao contrário do que à vezes acontece, essas experiências não o obrigam a sacrificar a estrutura das suas composições. Seja pelo simples facto de pegar no travessão da guitarra e atira-lo quase sem critério para dentro do piano, causando assim um estranho tinido nalgumas notas, ou por, a meio de uma música, activar uma pedaleira que dá um som cómico à sua guitarra (‘that’s my band’, brincou); a verdade é que o público estava fascinado. Os 200 presentes (sala esgotada) sabiam que, a qualquer momento o inesperado poderia acontecer e aconteceu mesmo, tanto na forma de divertidos desabafos como na forma de uma barulhenta e electrizante introdução para uma canção que inevitavelmente desembocou numa lenta cadência blues.

A teoria de que todas as canções do mundo são sobre morte ou sobre amor bate certo no repertório deste homem, mas, curiosamente, isso não parece ser motivo de angústias. De facto a descontração e boa disposição que Gelb demonstra em palco contrastam francamente com os tons sombrios com que pinta as suas canções, mas não lhes retiram magia ou carga emocional. Aos 56 anos Howe Gelb ainda consegue surpreender e até deslumbrar não só pelo seu carácter vincado, mas especialmente pelos seus espectáculos de se tirar o chapé… perdão, o boné de camionista.