Ponderei ao longo destes dias como iria começar este artigo, não só pela extensão física e cronológica do Hellfest, mas sobretudo pelo delírio que é ir a este festival. Quem vai ao Hellfest não vai a um mero festival, vai juntar-se a uma família completamente disfuncional. Todos os anos trashers, stoners, punks, vikings, deathcore kids, peregrinos do black metal – entre muitos outros – reúnem-se num melting pot de metaleiros de todos os cantos do mundo para expelirem o gás enquanto se debatem pelo melhor lineup a fim de não perder pitada.
O Hellfest em Clisson, França, passou a ser parte de mim. Foi a minha terceira edição e não tenho quaisquer dúvidas que vou lá regressar ínfimas vezes. O corpo ainda a recuperar de três dias de festival, 160 bandas para escolher que tocam entre as 10 da manhã e as 2 da madrugada, 6 palcos e oscilações de temperatura e decibéis incríveis, pede descanso mas grita por mais.
Comecemos pelo dia 0, o dia de chegada. Ao contrário dos outros anos, nesta edição fomos agraciados com chuviscos. Durante o festival não se chegou a um cataclismo Wacken e o São Pedro, apesar de certamente discordar desta reunião ateia, foi bastante generoso. Ora, no dia 0 há que tolerar as filas de entrada e correr para arranjar o melhor spot de campismo. Recomendação para os futuros peregrinos a este festival: longe das wc e das torres de sinalização das cores respectivas conforme a zona (Red, White, Purple…). Porquê? Fácil, porque durante as 4 noites vamos fazer parte de uma festa cigana mas com melhor gosto musical. Grita-se APEROOO ou seja, ‘bota pinga nisso/toca a beber’, toda a madrugada; assiste-se a brutal caddy, guerras entre carrinhos de compras; vê-se de longe (e em segurança) o trash mosh, com garrafas e tudo; e os vikings fazem questão de soprar nos seus cornos toda a santa noite. Mas ir a este festival é ter consciência disto, se querem descansar optem por ficar em casa ou, como eu faço, tampões nos ouvidos, uma zona qb sossegada e dá para repousar umas 4/5 horas. Quem estiver alcoolizado ou aborrecido pode sempre ir ao Metal Corner, até às 4 da manhã, para bailar na disco metaleira e ouvir os melhores hits como Céline Dion à la metal.
E agora passemos a coisas sérias, coisas complexas e devastadoras: que banda ver e que banda perder? O lineup deste festival é sempre um melodrama para qualquer metaleiro, a não ser que tenham um estilo completamente enraízado e acampem num dos palcos 24/7. Tendo esta premissa em conta, vou tentar ser o mais sucinta possível porque com uma carrada de bandas este artigo nunca mais acabava.
No primeiro dia, 17 de Junho, foi complicado entrar no recinto mas quando consegui Solefald foi a minha primeira escolha. Animados como já é a sua imagem de marca, Solefald fez os metaleiros mais sérios darem uns saltinhos de alegria. Ainda sem correrias e com o poncho guardado, fui participar na trip musical de RAMESSES que foram, para mim, das melhores bandas a tocar no palco Valley, palco que traria muito boas surpresas e viagens psicotrópicas. Segue-se a missa black metal de Behexen no palco Temple e, finalmente, pude começar a destruir as minhas vértebras e invocar aquele pequeno demónio recarregando baterias para o restante dia. Voltei ao Valley e Jambinai deixa-me repousar o pescoço, com as suas melodias encantadoras e plateia cheia, provando que os metaleiros não são assim tão restritivos musicalmente quanto se pensa. O primeiro concerto num dos Mainstages a que assisti foi o de Anthrax que, pessoalmente, me desiludiu pela qualidade de som duvidosa e falta de energia de Joey Belladonna. Pensava que iria mudar de ideias em VOA mas já sabemos que os trashers cancelaram o concerto. Na expectativa de me animar fui ao palco Altar para ver os míticos Vader e, logicamente, recuperaram o meu espírito e estoiraram com as minhas capacidades físicas. Estes senhores foram, sem qualquer dúvida, dos melhores concertos do festival e mereciam estar num dos Mainstages. De seguida, no palco ao lado e com a mesma robustez sonora, os trashers que deram em black, Inquisition, encadeiam a plateia e, certamente, converteram alguns ao seu adorado satanismo. Afinal de contas, não é por nada que à porta do Hellfest apareçam padres a tentar converter festivaleiros ou testemunhas de Jeová a dar abraços e flores. Pondo de parte ideologias e fanatismos, decido voltar no tempo e dar um passito de dança com Melvins que nos transportaram no tempo como muitas bandas iriam acabar por fazer ao longo dos três dias de festival. Curiosamente, das bandas que mais me surpreenderam pela positiva e pela energia foram Dropkick Murphys. Não era nada que não esperasse dos irish boys de Massachusetts que conseguiram inebriar o público de felicidade para um sapateado à Billy Elliot. Chega a altura de Rammstein e, sou sincera, vi 15 minutos se tanto, pela simples razão que estavam 50.000 pessoas a assistir e, apesar dos meus 1,74m ver alguma coisa era um milagre. Sabendo que não seria a última vez que os iria encontrar, foquei-me na minha preparação mental para escolher entre Testament e Sunn O))). Foi um dos vários momentos em que pensei, isto não se faz a ninguém mas a escolha acabaria por recair sobre Sunn O))). Instalei-me no Valley sentada com as costas apoiadas, tampões nos ouvidos, poncho por cima, meditei e deleitei-me durante 1 hora, encerrando, para mim, o primeiro dia do festival.
Ainda estão aí? Espero que sim pois a procissão ainda vai no adro. Segundo dia, 18 de Junho, baterias nada recarregadas mas o que tem de ser tem muita força e a cerveja vai ajudando a levitar o espírito. Começo com Dark Fortress no Temple, que foi, indiscutivelmente, dos meus concertos preferidos. O black metal melódico de Dark Fortress exala uma energia contagiante que nos puxa para a obscuridão cabeceando lentamente com cada acorde. Continuando o deambular entre palcos, divido as atenções entre Cattle Decapitation e Mantar. Antíteses sem dúvida mas obrigatoriedade para ambos e igualmente bons concertos com as suas peculiaridades e identidades bem distintas. Para uma mudança de espírito sigo para Torche para ouvir um stoner sludge bem ritmado e revigorante que, mais uma vez, puxou para o Valley milhares de metaleiros. O concerto que se seguiria foi caricato pela escolha de banda mas compreensível pelo simbolismo de Foreigner. O público estava hesitante e eu, em particular, sentia-me como se estivesse no carro da minha mãe a ouvir RFM mas valeu a pena ouvi-los um pouco para gritar a plenos pulmões “I want to know what love is”. Ainda no decorrer de Foreigner, abandonei o Mainstage para ir ver Fleshgod Apocalypse que foi um concertão sinfónico com toques barrocos. O death metal sinfónico de Fleshgod Apocalypse é uma experiência auditiva e visual, um dos concertos que mais se destacou no segundo dia. Para tentar sair do meu claro impulso tendencioso para acampar nos palcos Temple e Altar, voltei ao Mainstage para celebrar os 30 anos de Sick of It All e abanar o capacete voltando à minha tenra adolescência. Muitas bandas celebraram partidas ou aniversários nesta edição do Helfest mas Sick of It All, como bem disseram, são dos poucos que ainda o fazem com os membros originais e com o mesmo espírito I don’t give a fuck, e só por isso merecem um congrats. Regressando, sim adivinharam, ao Temple, Moonsorrow fez a conjugação perfeita de black e folk, enaltecendo uma mistura de sentimentos mais obscuros com mais joviais em paralelo. Para repousar o corpo, que já pedia algo mais suave, fui assistir ao stoner rock de Hermano e deliciar-me com a voz encantadora de John Garcia. Às 23 horas da noite, chegou a hora da cabeça de cartaz mais aguardada, não pela banda em si, mas pela nostalgia e novidade que iria trazer a um palco francês: Twisted Sister. Foi um verdadeiro espectáculo de energia e boa disposição, ouso mesmo dizer que foi o concerto mais cativante dos três dias, algo que não estava propriamente à espera. Preconceitos completamente arrasados por terra, Dee Snider continua igual a si mesmo (com menos maquilhagem) e puxou o público de tal forma que até os tímidos franceses não resistiram a repetir incansavelmente I wanna rock uma catrefada de vezes. Foi uma despedida visto que Twisted Sister, tal como Dee referiu, vai verdadeiramente despedir-se dos palcos mas foi um adeus de arromba que me deixou com um sorriso e um brilhozinho nos olhos. Para terminar a noite e desculpar a minha ausência na primeira edição do Vagos Metal Fest deste ano, opto por ir ver Dark Funeral. Korn estava a tocar ao mesmo tempo no Mainstage, mas depois de os ver o ano passado na edição anterior a escolha recaiu sobre o funeral sueco. Dark Funeral estremeceu com a estrutura do Temple e invadiu a alma do público tornando-a mais negra com a subida crescente dos decibéis.
Terceiro dia, dia de shabbat e de Black Sabbath. Vocês já devem estar cansados de ler isto mas o meu organismo, na altura, é que já implorava por uma cama com um colchão, portanto aguentem-se mais um pouco. Comecei o último dia do festival mais cedo e ao meio dia já estava à espera da trashallada de Municipal Waste que só pelo banner do Donald Trump a dar um tiro na cabeça me fez soltar uma gargalhada. Óptima energia, uma excelente banda para começar o dia e ir rebuscar as últimas fontes de energia. Mas a principal razão pela qual acordei mais cedo foi Orphaned Land que me conquistou o ano passado no Vagos Open Air. Foi um concerto encantador, tal como esperava, que fez a plateia abraçar-se, sorrir e partilhar o ideal (várias vezes repetido ao longo do concerto por Kobi Farhi) de que somos todos um, com ritmos étnicos perfeitamente combinados com diversificados estilos do metal. Terminado o concerto dos israelitas, rumo em direcção aos ventos nórdicos de Skámöld para um concerto digno de vikings lendários que fizeram o público saltar e Valhala aplaudir. Já no Valley, Unsane estava prestes a começar e, ao contrário do que é habitual neste palco, não era altura para relaxar mas sim para sacudir o corpo, abanar o capacete e reviver os anos mais tenrinhos da nossa juventude. No entanto, no placo Temple já se ouviam os polacos Mgla (uma ajudinha, pronuncia-se mgwa e siginifica nevoeiro) a afinar as guitarras. Chegada o mais possível à frente, aparecem os elementos com a característica cara tapada e roupa igual pois o que lhes interessa é a música e não o protagonismo. Apesar do entusiasmo para assistir a Mgla, o som pecou e não se conseguia quase distinguir os acordes. Espero vingar-me do sucedido durante o concerto de dia 25 de Outubro (juntamente com Behemoth e Secrets of the Moon) no Paradise Garage. Logo de seguida, assisti ao concerto mais ensardinhado a seguir a Rammstein, o concerto de Kadavar. Ora aqui está uma banda retro que faz qualquer metaleiro, até o que está pintado com corpse paint, estalar os dedos e bater o pézinho no chão. Excelente performance psicotrópica e nostálgica dos alemães Kadavar, que está sem sombra de dúvida no top 10 dos melhores concertos desta edição. Voltando às origens dos headbangers, regresso ao Mainstage para assistir a Slayer porque, honestamente, you can’t get enough of Slayer. Há muito poucas músicas que, como “Raining Blood”, são capazes de deixar um público inteiro eufórico e com pele de galinha em simultâneo. Uma das principais bandas lendárias do trash puro e duro arrebentou com o mosh pit e houve certamente muita cabeça rachada e pescoço deslocado, o meu ainda não me desculpou. Em seguida estava na altura de trocar de Mainstage, ir buscar uma cerveja e fazer um brinde, ou um skal, com Amon Amarth. Não há nada mais viking do que raise your horns (no meu caso o meu humilde copo) ao som da voz mais máscula nórdica do metal de Johan Hegg. O sol agraciou o palco e os famosos dragões de Amon Amarth brilharam em conjunto com o death metal melódico que deixou todos numa loucura contagiante, um concerto memorável. Chegou a hora de marcar poiso para o concerto de Black Sabbath mas, depois do xixi estratégico e de me mentalizar para a sede que iria passar, ainda ia ver Megadeth e Ghost. Megadeth fazem parte da Bíblia metaleira como bem sabemos. Foi um concerto inesquecível? Nem por isso, mas foi um bom concerto. Dave Mustaine está, claramente, abatido comparativamente com o concerto em Portugal no Rock in Rio (lembram-se quando ainda havia um dia “metal” no RiR?) mas, não obstante, mostraram ao Hellfest que ainda estão alive and kicking. Ainda à espera de ver Ozzy, Tony e Geezer e ignorando quaisquer vontades fisiológicas do meu corpo chega a hora da missa de Ghost. Com a já conhecida personagem bem vincada, o Papa Emeritus III pregou ao público entre as suas músicas à la pop metal (sejamos honestos) e conseguiu criar uma mise-en-scéne virada para o entretenimento. A melhor parte do concerto de Ghost foi o seu final: a explosão de notas bancárias do Papa Emeritus III, as freiras a entregarem preservativos com o respectivo branding mas, sobretudo, pela escolha de música “Monstrance Clock” acompanhada de um coro infantil. Crianças traumatizadas para o resto da vida? E agora, e finalmente, o apogeu, o clímax do festival: Black Sabbath. Humildemente falando, tive o privilégio de ver estes senhores 3 vezes na minha vida e, se esta foi de facto a última tour do grupo, então saio de barriga cheia. Ozzy Osbourne, apesar de todas as suas maleitas, estava mais enérgico que o público e ainda nos pediu que tomássemos “speed or something”. Tony Iommi arrasou como sempre na guitarra, Geezer Butler mostrou a sua mestria no baixo e o elemento mais recente, Tommy Clufetos, mostrou que o sangue novo sabe tocar bateria, e se sabe! Foi o melhor concerto na minha perspectiva, claramente, imparcial (note-se o sarcasmo) que me deixou em plenitude mas também com uma certa mágoa de pensar que o mais provável é nunca voltar a sentir-me paranoid ao vivo nem nunca mais sacudir as minhas fairy boots do armário.
Se pudesse, e se vocês tivessem a paciência para ler mais um relambório sobre o Hellfest, haveria muito mais que vos queria contar. Mas como não sou paga para ser relações públicas do festival o meu conselho é: Outubro/Novembro toca a comprar o bilhete e experimentarem na pele. O Hellfest é uma experiência única, é uma peregrinação árdua com calor ou chuva, mas venha o que vier, as bandas que todos os anos pisam o chão em Clisson são de um calibre invejável. Vão haver escaldões, vais rapar um frio de morte à noite, vais ter saudades de um duche decente, vais andar de pernas arqueadas depois de percorrer kms todos os dias, vais enervar-te com filas, mas vai valer a pena. Quem corre por gosto não cansa, não é verdade? Até para o ano Hellfest e aos camaradas do PA’ e leitores que vierem, encontramo-nos lá!