“Sleep é uma peça transdisciplinar que nos tenta colocar em contacto com a gestão da memória e que nos confronta com os instantes que precedem o desligar da consciência, imediatamente antes do estado de vigília ceder a um estado de adormecimento.”
Assim se definia a obra de Liz Harris aka Grouper, no panfleto entregue no Maria Matos a quem levantasse o seu bilhete para o especáculo, “Esgotadíssimo”, como bem me disse a simpática rapariga que me atendeu. O objectivo de Harris com Sleep, peça criada pela artista que era agora exibida pela segunda e muito provavelmente última vez de sempre, era portanto a de nos colocar naquele universo inexplicável em que entramos exactamente antes de adormecer. Aqueles momentos em que sonhamos mas não sonhamos, vagueamos antes por memórias, modificadas pelo nosso subconsciente já numa forma de sonho, com a diferença de estarmos, para todos os efeitos, ainda acordados. Sabemos todos que momento é esse, e quão inexplicável é. Por vezes apercebemo-nos dele, e acordamos. Outras vezes não, e ele desenvolve-se naquilo que dá nome à peça: dormir.
O mais espantoso na peça de Liz Harris não é tanto a ambição do seu objectivo, ou a originalidade com que se pautou para criar este espectáculo; o mais espantoso é antes que Sleep alcance o que deseja.
Naquele que foi sem dúvida um dos mais únicos espectáculos vividos pelos membros da audiência, organizado pela Zé Dos Bois (who else?), Harris transportou quem se deixou ser transportado. Não foi um concerto, de facto. Quem por qualquer razão tivesse comprado bilhete esperando ouvir música de algum dos álbuns de Grouper não teve, de forma alguma, o que desejava. Esta foi uma peça, uma experiência em particular, que tivemos a honra de testemunhar. Foi em cima do palco do Maria Matos que tudo aconteceu e, neste caso, tudo é mesmo tudo. Era lá que se encontravam as três telas de projecção onde seriam projectadas imagens da artista e onde estavam também aquelas três mesas de mixing onde Harris iria manipulando todo o espectáculo; todos estes elementos em cada ponta do palco, e no seu centro… almofadas negras. E foi aí que nos sentámos, perto uns dos outros, em cima do palco, e não em nenhuma das centenas de cadeiras que enchem o teatro. O espectáculo estava esgotado, e percebia-se porquê: seriam poucos os que teriam o privilégio de assistir àquela grande experiência, sentados em cima daquele palco por onde tantos grandes nomes já passaram. A curta dimensão da audiência foi essencial tanto a um nível técnico (o som saía de cada ponta do palco, envolvendo completamente os presentes que se encontravam em círculo no cetnro, e as telas de projecção não eram nem em tamanho nem em número suficientes para criar por toda a sala o espectáculo de imersão desejado) como a nível artístico e puramente humano. O facto de terem sido poucos os presentes fez com que, durante todo o espectáculo, ninguém se atrevesse a emitir um único som, além de ter permitido criar o sentimento de intimidade entre desconhecidos necessário ao sucesso de Sleep: era necessária fragilidade encarnada pelo espectador para que este pudesse ser transportado. Só de olhos fechados e corpo livre é que a viagem poderia ocorrer.
Ou seja, Harris pediu que nos entregássemos, por completo, aos sons (e não tanto às imagens) que nos envolviam, e esse pedido não tardou a vir. Passavam escassos minutos das dez quando as luzes diminuíram, não se apagando completamente. Algures pela sombra, fora do nosso círculo, surgiu Liz Harris, sem que mal nos apercebêssemos. Dirigiu-se a um dos seus três postos de controlo, e entre os três foi alternando ao longo do espectáculo, sempre, sempre nas sombras. Não a podíamos nem devíamos ver; o mundo que desejava criar era para nós, dentro daquele círculo, não para ela. Começaram-se a ouvir aqueles sons, oníricos, densos e melodiosos, um misto de loops, field recordings e quem sabe mais o quê, numa onda sonora que se foi transformando ao longo da noite, sem pausas, incessante. As imagens nos ecrãs surgiram rapidamente: algo que parecia ser um céu cinzento… ou talvez reflexos na água. Iam mudando um pouco, mas não muito. Foram essenciais à definição de tom e à criação de um imaginário em particular do qual pudéssemos, depois, criar o nosso. Mas rapidamente se tornou óbvio que o espectáculo só podia ser apreciado de uma forma: olhos fechados.
Alguns hesitaram. Olhavam à volta entre eles, ou então apenas para os ecrãs cinzentos. Mas não tardou a que começassem a ceder. Primeiro um. Depois outro. E outro. Não tardou a que grande parte do público estivesse de olhos fechados e cabeça em baixo, ou segurando-a com as mãos, sentado à chinês. Mais um pouco, e viagem começou a ficar mais densa, mais envolvente: alguns esticaram as pernas e deitaram-se. Mais um ou dois arriscaram a fazer o mesmo. Mais outro. E outro. E subitamente, grande parte do público estava deitado, ou de lado ou para cima, de olhos fechados. Desconhecidos confiando no estranho ao lado, relaxando o corpo por completo e fechando os olhos, deitando-se ao lado de alguém que nunca antes tinham visto. Não se sabe se era também este um dos objectivos de Harris, o de criar um ambiente tão íntimo entre todos os membros do público, e fazer-nos quebrar as barreiras do que normalmente se vê em concertos ou outros espectáculos. Quer tenha sido ou não, fê-lo, e foi algo de único. Todos estavam ali para o mesmo, e isso sentiu-se na pele.
E foi assim, com o corpo relaxado e olhos fechados, que a alma despertou. Sono? Não, esse esteve sempre bem distante. Harris não precisou de nos adormecer para nos levar para o limbo realidade/sonho. Fê-lo através da criação de ambiente, através de sons bem pensados e estruturados (a melodia ia mudando mas no seu cerne mantendo-se igual, como passos dados cada vez mais maior rapidez e intensidade em direcção a um destino), e através de um pedido implícito em todo o espectáculo: libertem-se. Libertámo-nos, no meio de estranhos que durante o espectáculo deixaram de o ser, e viajámos. Foi, efectivamente, uma das experiências mais únicas e inesquecíveis que tive até hoje, verdadeiramente e intensamente transportadora. O chocante é que Liz Harris conseguiu o que pretendia, o que em papel talvez soasse impossível; em mais que um momento estive naquele “limbo encantatório”, como diz o panfleto já aqui citado, algures entre a realidade e o sonho. Sempre sem sono (não ouvi sequer um único bocejo ao longo da noite), sempre conscientes… mas ao mesmo tempo, noutro local. Bastava ao espectador deixar-se ir para entrar em sintonia, e a partir daí começava a viagem.
Vi passarem à minha frente memórias recentes e passadas, com formas que não as suas, moldadas pelo reino dos sonhos, até cujo portão Harris nos levou. Não entrámos, e ainda bem; bastou o hall de entrada, o limbo entre o real e o não-real. O destino era esse, e Liz conseguiu levar-nos lá. Soa incrível, e é: apenas através de som e imagem, entregues ao público de forma o mais envolvente possível, a artista conseguiu colocar-nos bem acordados naquele momento antes do adormecer… mas aqui sem uma pinga de sono. Explicar esse universo, que nenhum de nós consegue visitar voluntariamente, é impossível; já todos passámos por ele, e explicações são, de qualquer forma, desnecessárias. Mas a viagem com que Liz Harris nos levou até ele foi, de facto, incrível, e a exploração que nos deixou fazer dele foi memorável.
O espectáculo terminou de forma lenta, com o som gradualmente a desaparecer. Vamo-nos agarrando de olhos fechados ao máximo à onda sonora, de olhos fechados, desejando que não acabe. Mas acaba ao fim de cerca de uma hora, e somos forçados a abrir as pálpebras e a voltar a dar força ao corpo. As luzes intensificam-se, e ouvem-se palmas. Liz continua nas sombras, acenando com um sorriso tão tímido quanto satisfeito, agradecendo. Levantamo-nos e saímos, descendo do palco e atravessando o corredor de cadeiras vazias até à saída.
Inexplicável e memorável são talvez os adjectivos certos. Uma experiência que vai além do sensatoria, que se sentiu tanto na pele como na alma. O objectivo de Harris foi cumprido na perfeição, e foi uma viagem espantosa. Não para todos, sem dúvida: é necessário empenho e entrega do próprio espectador, como já aqui se disse, para que resulte. Mas é pouco a dar quando tanto se recebe. Foi a segunda vez que interpretou a peça ao vivo, e muito possivelmente a última (a artista irá agora dedicar-se já a outros projectos, incluindo uma residência artística na Zé dos Bois), e no final saiu-se da sala com o sentimento de um privilégio vivido. Poucos estiveram presentes (o espaço não permitia mais), e muita sorte tiveram em lá estar. Tão inesquecível quanto inexplicável, naquela que foi uma noite em que se viajou até onde o racional não chega. E meu Deus, que viagem que foi.
(Isto é absolutamente ridículo, e soará inútil a quem o ler, mas é-me impossível fazer o que quer que seja esta noite sem o fazer desta forma: dedico este meu texto ao Gerard Smith. Que a viagem dele corra tão bem quanto a minha correu esta noite. Não tenho outra forma de lhe prestar homenagem que não esta, fazendo aquilo que faço. Ele fazia música; eu apenas escrevo sobre ela. E sorte e honra tive em ter escrito sobre ele.)