A crueldade dos Godflesh não se refugia no aparato, nem se engradece pelo exagero: ao soalho do Alquimista nada se oferece para além do imprescindível. Simples, desumanamente simples, a reverberante desarmonia dos britânicos suplica apenas por amplificadores, guitarras em profana eucaristia e “The machine” – engenho que nos transcreve locuções de uma dimensão onde a inquietude escraviza o tempo. Os espaços em branco ficam por nossa conta.
Esse paradoxo, tantas vezes declarado nos difusos versos de Justin Broadrick, não nos abandona em palco. Está sempre lá. O que teoricamente deveria ser uma experiência despersonalizada, subjugada às vontades maquinais e urbano-depressivas, é uma catártica libertação. Às primeiras dissonâncias de Love Is A Dog From Hell, ninguém nos impede de cuspirmos nas nauseabundas ruas de Lisboa ou de arrancarmos as vísceras do quotidiano – fazemos o que queremos, sem sair do lugar, enquanto Like Ratsnos traz o exaspero de Travis Bickle a cada estampido. Há quem enlouqueça por finalmente testemunhar Godflesh em carne e osso, tantos anos depois de Streetcleaner lhe ter batido à porta:Christbait Rising, e o seu groove atroz, leva um espectador a irromper palco adentro, beijando a monição, rasgando a camisola, agarrando JKB e caindo, finalmente, de joelhos, largos minutos depois.
Avalanche Master Song, resgatada de uns primórdios onde os Fall Of Because fervilhavam ainda nos escalpes de Birmingham, sufoca. A linha de baixo perpetrada pelo impassível G.C. Greennasceu para ser rechaçada ao vivo e o Santiago Alquimista porta-se como homenzinho na hora de aguentar a cavalagem sonora – a sala nunca deu parte fraca na acústica, mesmo quando Tiny Tears, envolta na respiração da fog machine, crispou o seu ritmo. Mas, se na passagem pelo Amplifest em 2011, Slateman terá sido o melhor momento (culpa daqueles beatíficos dez minutos finais de feedback), em Lisboa Monotremata fincou as mandíbulas sem paralelo: uma convulsa e enferma maquinaria mid-tempo, onde Broadrick culpou as seis cordas pelo calvário que nunca o abandona. Peso. Não há sinónimos. Peso.
O epílogo escreveu-se na caligrafia de Crush My Soul, pejada de veneno e nutrida por um riff que encorajou Aaron Turner a pegar na guitarra. Ver Godflesh é também assistir a essas translúcidas sombras, que só nasceram por sua culpa – quando a drum machine se silencia, mais de duas décadas depois, a porta permanece aberta para quem quiser explorar.
RA alinha-se na categoria dos que exploram, precisamente. Etéreas pesquisas sonoras, transportadas pela electrónica, mas em parte condenas no Alquimista por um silêncio que nunca houve – bem pelo contrário, as gargalhadas e berros da plateia feriram o concerto, mas não lhe retiraram uma densidade que vale a pena absorver noutros espaços e noutras situações.