Vinte anos após o primeiro lançamento discográfico, o rapper de intervenção brasileiro traz-nos novo álbum de título bem ardiloso e fresco – Sem Crise. Duas palavras que constituem uma verdadeira antítese com a situação do país, no entanto, na Avenida da Liberdade tudo parece melhor do que é. Parece pois, ao subir a avenida, um déjà vu! – lembrei-me do som Resto do Mundo, última faixa do homónimo e primeiro disco do músico, quando ao passar pelo luxuoso shopping da Avenida vi o número de camas de cartão que por baixo das suas arcadas se estendiam. Mas chega de tristezas, como diz o outro. Gabriel atrasou-se um bocado: perto das 22h quem ficou no exterior pôde vê-lo chegar de carro, receptivo às várias abordagens dos muitos fãs ainda à porta.

Naturalmente o setlist é em formato de apresentação do novo material. Todavia Gabriel O Pensador não pode prescindir de material como Cachimbo da Paz: a evocar os primeiros coros e mãos no ar, depois de um início a cargo de duas faixas de Sem Crise. Estas soam muito melhor ao vivo, algo que é comum a todo o seu material, através da mais valia musical auferida pelas óptimas bandas com que sempre se fez acompanhar. Esta é nova e está longe de ser excepção: a clássica Pátria que me Pariuseguida de Lavagem Cerebral aka Racismo é Burrice, grandes, grandes sons – com as exemplares prestações de guitarras, baixo e bateria adquirem uma carga tão cool que se torna impossível não gostar de Gabriel o Pensador. Os frutos deste estilo comprovam-se não só pela repleta sala ao rubro com cada clássico, como também na disparidade nas pessoas que assistem: de todas as idades, casados, namorados e famílias.

O músico brasileiro afirmou-se como uma voz de contestação logo à partida, com sons como a violenta Tô feliz (Matei o Presidente)ou a já mencionada Resto do Mundo, quiçá um dos mais belos e autênticos retratos sobre vida dos sem-abrigo. Nunca Serão do novo disco dá o ar da sua graça nesta vertente lírica – uma crítica sarcástica bem ao seu estilo story-teller – rebusca no filme Tropa de Elite o fio condutor para incentivar o mesmo tratamento dado aos bandidos, para os políticos corruptos. Depois de Tás a ver, talvez o single com mais sucesso do músico em Portugal (proveniente do disco Cavaleiro Andante), Gabriel refere que irão tocar uma música que não tocavam há muito tempo e que no Porto foi pedida, não por bons motivos, é certo: Pra Onde Vai é dedicada (agora no Tivoli) ao rapaz assassinado no Porto.

Depois de um início com sons clássicos em alternância com músicas de Sem Crise, é oferecido um bom momento da actuação para dar a conhecer o novo material. Com uma versão que já prepara terreno para o renascimento de mais um hit ao vivo: o single Surfista Solitário surge muito mais interessante que o original. Após Na Palma da Mão o set volta a Cavaleiro Andantecom Rap do Feio, e depois mais atrás, ao clássico Quebra-Cabeças com o super hit 2,3,4,5 Meia 7,8, a ter direito a duas meninas do público no palco para cantarem com Gabriel. Saída do palco, agarrado às duas meninas, e bem disposto, diz: “está na hora”. Mas na realidade estava era na hora do primeiro encore, e, mais especifícamente, de ir até à lua com a belíssima Astronauta.

A aura contínua chill out com o percussionista a dar voz a uma versão portuguesa de Get Up Stand Up de Bob Marley. Eu e a Tábua surge com um sample da cover anterior e leva Gabriel a passear pela plateia, esquecendo-se entrentato da letra e começando a improvisar. Quando regressou ao palco já não vinha sozinho. Trouxe com ele um MC que estava na plateia e que demonstrou bom skill no freestyle: “mandou bem, mandou bem”. Mas a sessão de freestyle prolongou-se: exceptuando o baterista e um dos guitarristas, todos os elementos da banda rimam ou cantam, todos rimaram mais do que uma vez cada um, incluindo o Mc da plateia, excelente momento que deu mote para nova saída de palco.

Resto do Mundo de 1993 abre o segundo encore de Gabriel o Pensador neste Tivoli cheio, com imensos solos soltos a adornarem-na do início ao fim. Após este solene momento, o final foi sempre a abrir com Filha da Puta (do disco Ainda É só o Começo); porém, a contar pela sua versão ao vivo, com um instrumental rápido a abeirar o punk, poder-se-ia pensar proveniente do disco Seja Você Mesmo (mas não seja sempre o Mesmo). Lançamento que constitui o mais violento do artista, seja em termos de som, com guitarras mais rock n’roll, seja em termos de letras, inteligentes e em tom inconformado, do qual se extraem as malhas que fecharam a noite. Primeiro: Se Liga Aí e, de tacada,  a  inevitável  e única Até Quando?, ambas autênticos manuais de sobrevivência (ou de anti-suícidio) neste nosso mundo.