Desde putos que os Full Of Hell infestam o hardcore com distopias electrónicas – basta recuar até à “The White Mare” para rapidamente discernir de onde vem o súbito encantamento platónico por Merzbow. Essas estridentes adulterações de som, mesmo não indo além de bajulação moderna a Man Is The Bastard [e, particularmente, ao disforme alter-ego Bastard Noise], ofereceram aos norte-americanos o critério da diferenciação. Sim, o aborrecido jargão do marketing vai bem aqui: os Full Of Hell deram um passo à frente de todos os companheiros geracionais, que, há coisa de três, quatro anos, rebentaram como cogumelos no ofício de juntar punk e metal na mesma onda transmissora. Pelos gritos lancinantes, pelo feedback tortuoso e pelos chilreios noise, tornaram-se, na cena, aquele maluquinho indigente que qualquer cidade acarinha como mascote não oficial.
Estarem hoje na Profound Lore só admira, então, quem anda a dormir. Suavizadas as dissemelhanças entre géneros que tantas vezes se metem de costas voltadas, os Full Of Hell trocam agora de objectivo para o tal terceiro elemento diferenciador: o ruído. É ele todo o leitmotif desta aliança transoceânica, que se cumpriu sob um certo rigor introvertido – nunca os americanos estiveram em contacto directo com Merzbow, usando apenas como intermediárioBalász Pándi, baterista húngaro residente nos Estados Unidos, que já tocou com meio planeta, Masami Akita incluído. O japonês enviou-lhes 45 minutos de noise e os rapazes de Baltimore, bem, desenmerdaram-se.
Daí que esta colaboração, mais do que uma justaposição de esforços, reflita uma empreitada cut, copy & paste, na qual os Full Of Hell agarram à bruta o papel central. Só pela quinta faixa – “Raise Thee, Great Wall, Bloody And Terrible” –, já após um chorrilho de blast beats e mocada grindcore, finalmente damos por Merzbow. A tempestade noise, como se Masami fosse neste LP uma espécie de São Pedro encarregado de do céu fazer cair uma saraivada de lâminas, completa os espaços que os Full Of Hell deixam por preencher. Mais do que exposto na dianteira, Merzbowé, nesta política de terra queimada, o tipo que segue atrás das tropas para derrubar o que ficou por arder.
Esta sensação de que o japonês se limita ao cameo, ou, quanto muito, à redutora função de personagem secundário, é diminuída por “High Fells” e “Ludjet Av Gud” – nos seus nove minutos entendemos como a distorção orgânica de Full Of Hell encontra na inarmonia mecânica de Masami o aliado perfeito. O saxofone em desatino serve de aglutinador ideal para as descargas sludge e só lamentamos que tal equilíbrio de forças não se repita com frequência.
Se em conta tivermos o facto de que a ideia embrionária passaria por um split e não por uma colaboração, talvez compreendamos melhor o motivo de, neste álbum, os norte-americanos serem as bestas que vão batendo no peito à macho-alfa cheio de bazófia. Responsáveis pelo trabalho de edição, os Full Of Hell não conseguiram evitar essa predominância. E não é então de estranhar que no lançamento em CD haja um disco extra: chama-se “Sister Fawn” e mostra treze minutos exclusivamente criados por Merzbow. Ou os norte-americanos não quiseram pegar neles directamente ou simplesmente foram incapazes de adaptá-los à sua música. Aparte da real justificação, sobra o sentimento de que houve um vencedor dentro da mesma aliança.