Como em qualquer outro evento, antes do começo do mesmo, as conversas e o burburinho faziam-se ouvir. A diferença entre este e tantos outros é que assim que o trio pisa o palco e recorrem aos seus instrumentos, esses sons vindos do público tornam-se estupefacção. Durante cerca de uma hora, não se ouviu mais um comentário ou algum tipo de conversa. Afinal, estava-se perante um mito, uma lenda, ou como se quiser definir Peter Brötzmann.

A entrada em cena dos Full Blast, mas mais especificamente do alemão de 71 anos, torna-se quase uma experiência mística. A este homem nunca se poderá solicitar uma extinção da fúria e da agressividade com que toca ora o seu saxofone, ora o clarinete; e testemunhar tal ocasião é um privilégio indescritível. Muitos poderiam dizer que se tratou de uma interpretação pouco convencional mas, na globalidade, o que pode ser dito é que foi através desta fórmula que Peter Brötzmann conseguiu quebrar tantos dogmas e explorar uma imensidão de novos conceitos. Na ZDB foi isto que se sucedeu. Uma constante apropriação de novos pergaminhos, daquilo que em muitos casos foi denominado free jazz, mas que nesta noite era expandido até uma brutalidade indecente.

Ao olhar para o ‘monstro’ não era complicado perceber a razão de já ter sofrido alguns problemas de saúde derivados da forma como se expõe musicalmente. A cada sopro sente-se que será vislumbrado um pedaço do seu pulmão ou o rebentamento de uma veia facial. Assiste-se em directo a um esforço e uma dedicação autêntica. Um sopro desumano, gravoso e monstruoso.

Acompanhado por um duo que parece não querer perdoar os ouvidos de quem assiste, Marino Pliakas no baixo e Michael Wertmüller na bateria, apresentavam uma forma sonora tão forte, poderosa e expansiva que se tornava improvável conceber que naquele palco apenas estivessem presentes três pessoas e não um número imenso de indivíduos.

Ao trio não pode ser pedido apenas harmonia ou melodia, na verdade, esse não permanece como o objectivo principal. Presencia-se antes uma espécie de big bang musical, uma história de colisão entre os vários instrumentos, em que cada um se potencia ao máximo da sua funcionalidade para atingir a proporção mais selvagem possível.

Com a sua idade aquilo que seria de esperar seria uma vivência pacata e calma, mas olhar para Brötzmann de olhos serrados, com aquele aspecto de lenhador e para aquelas mãos e dedos gigantes capazes de fazer tombar qualquer criança mal comportada torna-se um regalo. E, mesmo quando envereda pelos seus solos nota-se que também o seu duo o encara com uma reverência e genuína admiração, que o alemão também lhes retribui.

A Peter nunca falta o fôlego apesar de muitas vezes se temer isso. A Marino também não se vislumbram cenários em que as unhadas violentas nas cordas do baixo e as pezadas nos pedais possam cessar. De Michael nunca se espera que deixe de bater na sua bateria até se prever a abertura de fendas nos tambores. Assim, trespassa antes a perplexidade de entender como é conseguido cada momento que tende a ultrapassar os limites da moralidade.

Desta forma, a aventura e o sentido de uma recorrente procura da mesma, eram permanência na Galeria ZDB. Um desenvolvimento constante na progressão da música e,se assim não fosse, não teria feito sentido. Nem para os Full Blast, nem para quem os ouvia. No fundo, o que foi proporcionado poderia ser intitulado como uma tareia consentida. Um espancamento sonoro, tolerado, sem queixas, mas com um subversivo prazer. Será assim que se sente o saxofone de Peter Brötzmann quando recebe as suas laminadas?