O trono da noite parecia ter dois destinos possíveis: o lado caótico e frenético de Hermeto Pascoal ou o kuduro contestatário e apoteótico dos Batida. Mas eis que uma para muitos desconhecida e extraordinária banda chamada DakhaBrakha arrebatou não só o título de concerto do dia, mas também desta primeira parte do FMM 2013. E, felizmente, fê-lo perante muito, muito público, na primeira enchente do ano.
Há dois anos, um projecto russo chamado Ayarkhaan, assente num conjunto de vozes agudas e no poder do berimbau, deu em Sines um concerto profundamente interessante que pecou, apenas, por ser demasiado monocórdico. Pois bem, considerando as semelhanças que existem com os DakhaBrakha, num certo trance orgânico e contido que partilham, eis o que não sucede com a banda ucraniana. Em palco, temos percussão variada onde se inclui um djembé, fruto da circulação geográfica dos instrumentos, um acordeão, um violoncelo e um piano. Em música que desafia as fronteiras estéticas, são fundamentais as vocalizações, sejam as femininas, próximas das maravilhosas vozes búlgaras, ou a de um extraordinário intérprete masculino, que, quer num tom ultra-agudo, quer num registo mais visceral, fá-lo sempre de forma magnífica. Há momentos de viagem hipnótica, de devaneios dub dançáveis ou de beleza etérea. E há uma aproximação a uma pop negra e melancólica, à medida dos The Antlers, em Baby ou no lindíssimo e misterioso Specially For You, que arriscamos dizer ter sido um dos momentos mais arrepiantes de sempre do festival. “All the stars in the sky are for you”… mais um dos laivos de surpresa e encanto que Sines sempre nos habituou. Apenas uma das razões para contestar as incendiárias palavras proferidas mais tarde por Hermeto Pascoal.
A propósito, arrumemos desde já esse episódio insólito. Após hora e pouco de concerto, o ancião brasileiro chega ao microfone e profere as seguintes palavras: “Nós vamos parar de tocar porque a organização mandou parar. Este festival é uma merda”. Nem mais, nem menos que isto. Inevitavelmente, a reacção generalizada esteve algures entre o espanto e a revolta. Passado um pouco, um dos elementos da banda veio assumir as responsabilidades e ter-se tratado de um mal-entendido, seguindo-se um tímido regresso a palco de Hermeto Pascoal, para um pequeníssimo tema (finalizado?) de não mais que dois minutos. Só que, em termos de credibilidade, o estrago estava feito. Para trás, ficava uma odisseia de jazz experimental, que usou e abusou da voz enquanto instrumento adicional (muitos sons repetitivos, muito poucas palavras) e com pequenos fogachos de música tradicional brasileira. Muito técnico, pleno de virtuosismo e capaz de criar o deleite para os apreciadores do género, mas colocando uma certa barreira para quem, de forma genérica, não aprecia a liberdade jazzística como conceito de exploração de sons. Numa onda com algumas semelhanças, ficam as saudades do bem mais aberto Cyro Baptista, que deu um dos concertos mais brutais do FMM 2009
O final de noite fez-se com a festa apoteótica dos Batida. Longe da gratuitidade da trupe bósnia do dia anterior, o projecto luso-angolano mistura o lado mais duro e urbano do kuduro com o maior requinte do semba, como sucede com o viciante Tirem-me o Chapéu. Houve vários MC’s convidados: o interventivo Iconoclasta, Sacerdote e ainda Diafra, cuja presença em palco foi aproveitada para uma homenagem a uma grande referência da rádio portuguesa, o malogrado António Sérgio. A crítica ao poder político angolano foi clara, com as palavras “tortura”, “corrupção” e “ditadura” a surgirem em destaque, bem como a cara do presidente José Eduardo dos Santos rasurada com uma cruz. Já na política portuguesa, a mensagem foi bem mais difusa, com Cavaco e líderes partidários a aparecerem lado-a-lado numa montagem, acompanhados do apelo “façam barulho”. Fecho deste primeiro fim-de-semana com o inevitável Alegria e um sample endiabrado de kuduro e a certeza de que, após os Buraka Som Sistema, os Batida são mais um fenómeno explosivo de recriação, em Portugal, da África lusófona urbana. Após o abraço da editora Soundway, que tenham também o merecido sucesso.
Umas horas antes, a noite do Castelo abriu com a genialidade excêntrica de JP Simões. Foi um concerto em nome próprio, mas longe de ser a solo, com o músico a fazer-se acompanhar por uma verdadeira big band, com guitarras, saxofone, cavaquinho, o grande percussionista José Salgueiro ou a ajuda vocal de Luanda Cozetti. O repertório assenta essencialmente no último Roma e pisca o olho ao samba (no delicioso Samba Radioactivo), ao flamenco ou ao tango. A coisa poderia, a espaços, descambar para uma leveza excessiva, mas o ritmo das palavras non-sense de JP Simões não o permite. Isso sucede nas letras dos temas, mas também nos longos monólogos, com dedicatórias à namorada (só ele para não tornar tornar a coisa azeiteira), elogios “ao melhor do Mundo que são as crianças” (só ele para não tornar a coisa cliché), piadas de salão, manifestações de carência afectiva e “queixas” dos músicos pela falta de bebida. Um delicioso misto de música pseudo-pseudo-intelectual (noutra escala) e stand-up comedy nerd.
À tarde, o Castelo tinha recebido o trio Reijseger Fraanje Sylla. Em termos instrumentais, ouvimos as deambulações de um piano e um violoncelo que alterna entre um som mais clássico e melancólico, agudos experimentais e a transformação excêntrica num baixo. A acompanhá-los temos um senegalês, qual líder xamânico que canta junto do público, contorna o palco empunhando um indistinto objecto rústico ou faz uma pausa para tocar o que pareceu ser uma m’bira (espécie de caixa de música revestida com umas cordas responsáveis pela construção do som). Como parece faltar diálogo na fusão, o resultado não entusiasma, movimentando-se numa fronteira pouco recomendável entre o intelectual e o pitoresco.
O FMM prossegue esta Segunda-Feira no Centro de Artes e, a partir de Quarta-Feira, a renovada Praia Vasco da Gama junta-se ao Castelo como palco de concertos. Aline Frazão, Rokia Traoré, Onda Trópica, Rachid Taha ou Femi Kuti são alguns dos nomes em destaque.