A primeira grande questão que se pode, e deve, levantar durante a leitura deste texto é “o que é a spoken word?” O PA é um site de música. A spoken word é música? Vou mais longe: a spoken word, como a música, é uma forma de comunicação — e é longe porque estou a esticar o nosso campo de acção. Mas também estaria a mentir se não dissesse que o que nos levou ao Festival Silêncio! foi, precisamente, a presença de Saul Williams — um nome gigantesco da spoken word, mas um nome nada insignificante na música. Só de pensar quão interessante é poder ter esta noção dual de um poeta-músico, diria que tudo está justificado.

Parte da spoken word é, também, a capacidade de prender o espectador: a força com que se declama e do que se diz, a frontalidade com que se enfrenta a plateia e, claro, a musicalidade com que se dispõem as palavras. Este último elemento é o que faz a diferença entre uma missa típica romana e uma festa gospel. Na primeira, como é óbvio, estamos no sítio ideal para reflectir toda a nossa vida, a vida dos vizinhos, para meditar, e para pensar quão injusto deus é, que não nos responde às preces; óbvio que na segunda estamos no mínimo atentos ao que se passa no estrado onde está o padre.

João Peste, dos Pop Dell’Arte, começou a noite e, infelizmente, inscreve-se mais facilmente no clube dos católicos romanos (e houve mesmo quem meditasse, não é um exagero para tornar o texto mais bonito). Optando por recitar uma longa história com muita mitologia à mistura, passada na Babilónia, adornada por ruído ambiente de Paulo Monteiro e, de quando em quando, enriquecida por alguns cânticos estranhos do mítico roqueiro. O problema não estava, claro, no conteúdo, que era uma história bem interessante, mas antes no facto de não ser possível prestar atenção a tudo o que se declamava durante muito tempo seguido (quanto mais durante toda a performance).

E é nisso que Saul Williams deu cartas. E cartas. Permitam-me a expressão (e avisa-se a navegação que vai ser proferida uma palavra censurável): foda-se. Com as letras todas. Não só o conteúdo dos poemas do norte-americano tem a capacidade de pôr toda a gente a pensar, como a sua presença é, pura e simplesmente, de uma força incrível. Não havia mais nada naquele palco, só o microfone e a presença de Saul. Não houve sequer necessidade de música de fundo para preencher o silêncio: desde a musicalidade que estava na voz deste senhor, aos próprios ruídos de fundo, como o ar-condicionado e sussurrar do público, tudo compunha canções que acabaram por ressoar nas cabeças de todos os presentes até ao fim da noite, certamente.

Desde o primeiro poema, Coded Language, por sinal o seu mais conhecido, que Saulimpôs a sua presença. Com uma presença demolidora, declamou e gritou — de tal forma que dispensou o microfone e fez-se ouvir com a sua voz, só e apenas.

À parte desta sua faceta poderosa — e a sua poesia fala disto mesmo, de poder —,Saul mostrou-se simpático, e fez uso dessa característica para conduzir o público pelas suas linhas de pensamento, desde a sua ideia de santíssima trindade (homem, mulher e criança) em oposição à cristã (homem, filho homem e um fantasma a substituir a mulher), à sua noção de raça, tema chave da sua poesia, explicando o óbvio: que a “raça” é uma noção social parva. Fez uso da sua simpatia, também, para provar quão importante é o silêncio, o que ainda está por ser dito, mas também o que se diz, para provar que a palavra é realmente poderosa. Por essa altura, chamaria alguém para recitar um poema em português.

Saul Williams protagonizou uma performance irrepreensível. E se questionarem a presença do PA nesta noite, ela justifica-se pela musicalidade com que tudo se passou, a magia com que ele captou todas as atenções e, claro, com a música que cantou, verdadeiramente: Black Stacey (ou “Esteice”, como lhe chamavam quando viveu em Salvador, sendo esse o seu nome do meio).

Saul Stacey Williams seguiram-se Biru & Bling Project. Começando Biru por recitar os seus poemas, explicando-os com estórias ao público presente (consideravelmente menos abundante do que na actuação anterior), seguiram-se os Bling Project numa sessão instrumental, que acabaria por convergir numa verdadeira sessão de Hip Hop tocado, com o feeling que lhe é característico.

No final, tudo acabou num concerto. Ouvia-se um baixo grave, a seguir as duas tarolas da bateria, com uma guitarra a fazer as linhas melódicas com a ajuda de um DJ. Dançava-se, batiam-se palmas e o ambiente pareceu ter mudado radicalmente. Mas, na verdade, ninguém se esqueceu do acontecimento memorável que foi a actuação de Black Stacey. E, aqui para nós, sublinhe-se que o PA se sentiu mais em casa durante a sessão de spoken word. Nem só de guitarras se faz a música.