Ir ao Entremuralhas pode ser perigoso: entre os caminhos esguios do mui nobre Castelo de Leiria e as passagens de modelos sobra relativamente pouco espaço para a contemplação que uma parte significativa do cartaz exige. Não é, no entanto, motivo suficiente para desmerecer um cartaz e uma organização com uma invulgar atenção ao detalhe e com um rasgo a nível programático ainda menos habitual. Talvez por isso o epíteto “festival gótico” acaba por se tornar algo bem menos (ou no caso, nada) boçal do que seria de prever: há uma combinação de sensibilidades admirável dentre desse universo, tantas vezes evocado mas simultaneamente de escorregadia definição.

Desde 2010 já passaram pelo festival nomes que são ao mesmo tempo surpreendentes e óbvios, entre eles (e como se voltou a repetir) muitas estreias que há muito clamavam por uma visita a Portugal. Acrescente-se que tal estreia aconteceu num espaço cuja beleza e enquadramento com a temática de um festival são provavelmente únicos no mundo.

Dia 1 (25 de Agosto)

O primeiro dia prometia uma avalanche teutónica mas foi dos holandeses Silent Runners a primeira derrocada. A presença de Dolf Smolenaers é certamente sentida e há um esforço para que a intensidade de Ian Curtis seja para sempre relembrada. É, infelizmente, na falta de originalidade que reside um dos maiores problemas do quarteto sobretudo quando o Post-Punk genérico tem um pendor moderno que o torna especialmente insípido.

Se era possível antecipar todas as movimentações de Silent Runners, o mesmo não se pode dizer de Karin Park, já de si um nome que simboliza na perfeição a heterogeneidade do cartaz. Afinal, estávamos perante alguém que está mais perto da Eurovisão que de um qualquer bar subterrâneo de um centro comercial em decomposição. Um misto de The Knife bem mais açucarado e bem menos complexo com atitude riot grrrl que tão depressa piscava o olho às dancefloors dos anos 80 como enveredava pelos caminhos sombrios do Trip-Hop. O mais recente Apocalypse Pop denota a crescente influência dos caminhos trilhados em Bristol mas a passagem pelo trabalho mais acessível foi frequente. Já depois da homenagem a Pussy Riot com “Hard Liquor Man”, o concerto foi encerrado numa toada bem mais violenta com “Thousand Loaded Guns” onde se mostrou que as fontes de Karin Park não estão confinadas ao mundo da música electrónica.

Se a presença da sueca (agora norueguesa) serviu para descomprimir os corpos, foi precisamente o oposto que se passou com aquela que era, porventura, a banda mais desafiante de todo o cartaz do Entremuralhas 2016. As alemãs Grausame Töchter deram uma verdadeira lição de como manter tornar desconfortáveis e, de alguma forma, intimidantes todos os momentos desde que surgiram em fila por entre a plateia em direcção ao palco, passando por um contador decrescente que indicava o momento de entrada em palco até a uma actuação que tem o condão de atacar um sem número de instituições mentais que a sociedade moderna estabelece de forma quase universal.

É verdade que a líder Aranea Peel proclama em entrevista que o público pode vir apenas para dançar. A vertente EBM ajuda a não invalidar a afirmação mas isso seria um reducionismo quase criminoso da proposta apresentada pela multi-facetada líder das cruéis irmãs, também envolvida no mundo da música clássica com reinterpretações de músicas germânicas de cariz popular. De resto, essa vertente da carreira de Peel é bastante notória na música de Grausame Töchter quer pela presença do violoncelo quer pelo carácter anormalmente épico de algumas das composições. A mistura de mundos é, aliás, uma das principais características do octeto (no Palco Corpo reduzido a sete elementos) nomeadamente com Industrial, Techno e Punk à mistura.

Tudo isto é complementado com um espectáculo arrojado envolvendo elementos de BDSM, coreografias eróticas, armas, urina e sangue. No Entremuralhas tudo isto esteve presente ainda que em doses algo moderadas para o que costuma ser normal nomeadamente no momento de urofilia ou nas incursões mais sádicas da dominatrix Peel.

Não se pense, no entanto, que se trata de uma reciclagem electrónica de Rockbitch. Há substância de sobra para justificar o aparato: a guitarra barítona é um elemento incomum que torna o som particularmente musculado nomeadamente pela pujança do baterista Gregor Henning, o único elemento masculino do grupo. Desta curiosa combinação emerge Peel cuja presença vocal rivaliza com o impacto de tudo o que se vai passando.

A capacidade de gerar tensão, mesmo quando a partir de certa altura se instalou uma maior acalmia no que decorria em palco, foi um dos aspectos marcantes de uma performance de contornos raros. Se é verdade que a arma apontada nunca passou de ameaça, ficou sempre no ar um clima pesado, frio e desconfortável. O clima misândrico torna tudo bem mais carregado pois trata-se de uma aversãi bem pouco habitual numa sociedade demarcadamente patriarcal. Não se pense por um instante que se trata de uma qualquer manifestação de feminismo “tumblresco”: a contestação é substituída pela crueldade e a afirmação dá-se pelo ódio. Aqui não há ofendidas, há agressoras. Um raro e inolvidável momento.

Dia 2 (26 de Agosto)

Seria difícil o início do segundo dia depois de tamanho atropelo criativo nomeadamente quando as duas propostas que abririam o dia na excelentíssima Igreja da Pena se revelaram pouco mais do que uma marcação em alguns dos sons mais habituais do Entremuralhas.

A aparição de Annmarie Thim, ex-voz principal dos lendários Arcana, com Angelic Foe teve honras de abertura do segundo dia do festival. Se é verdade que nada se pode apontar à prestação vocal, a verdade é que o som não esteve à altura da beleza do local. Várias oscilações acabaram por minar parte do que seria doutra forma uma experiência memorável. Ainda assim e com Mother Of Abominations (lançado pela portuguesa Equilibrium Music) a dominar boa parte do alinhamento a viagem acabou por não ser totalmente perdida com momentos quasi arrepiantes de virtuosismo operático.

Se foi agridoce o começo, a segunda tentativa deixou um sabor bem mais amargo. Os italianos Dark Door são donos de uma sonoridade que tem tudo para escorregar e, infelizmente, não escaparam da queda. O dramatismo excessivo parece ser objectivo mas nem com as devidas reservas é possível apreciar a combinação de batidas electrónicas enraizadas no Synthpop italiano e a voz soturna de Mario D’aniello. A duração demasiado excessiva também não ajudou em nada deixando a aparição da banda de Nápoles sem qualquer salvação possível.

A escolha de King Dude para iniciar as hostilidades no Palco Alma até poderia fazer sentido no papel. O problema são as características inatas do Folk do colectivo de TJ Cowgill: previsível e enfadonho. Pondo a coisa grosseiramente: no meio dos hipsters ou no meio dos góticos o que se destaca é sempre a pobreza extrema da música do norte-americano. A evitar. Sempre e em qualquer lugar.

O verdadeiro motivo para quase fazer alpinismo até ao longínquo Palco Alma era Sex Gang Children. A lendária banda de Londres sempre teve um percurso atribulado incluindo um recomeço do outro lado do Oceano Atlântico. Pelo meio deixaram algumas das maiores pérolas do Gothic Rock. Com o aliciante de contarem com a formação original, os londrinos desfilaram os clássicos da primeira encarnação que durou somente entre 81 e 84 com particular incidência para o único longa-duração dessa altura: Song and Legend (1983). Um começo com “Killer ‘K’” e “German Nun” deram o mote para uma actuação que revelando as maleitas da passagem implacável do tempo também mostrou um Andi Sex Gang com algumas das suas principais qualidades intactas.

Foi até possível ouvir uma curiosa cover de Edith Piaf, o que acaba por não surpreender dada a conhecida predilecção do vocalista pela diva francesa. A sequência final ainda antes do encore foi marcada pela icónica “Sebastiane” e “Song and Legend”. O regresso fez-se com “Die Traube” e uma das poucas incursões nos trabalhos mais recentes mas foi o término com “Cannibal Queen” e “Dieche” que simbolizou um reencontro com a história.

Em sentido descendente esteve o quinteto Frustration. Fazer Post-Punk em 2016 é complicado e mais complicado se torna quando adopta a fórmula dos franceses. Numa actuação acidentada onde metade das cordas do guitarrista Nicus Duteil se partiram, os problemas técnicos acabavam por ser agradáveis mais não fosse porque durante alguns momentos ofereciam uma pausa à fastidiosa experiência de ouvir Fabrice Gilbert. Não é por acaso que não existem muitos vocalistas a fazer dos problemas de dicção um traço vocal distintivo.

Foi à bruta que se deu a redenção. Os seminais Die Krupps não hesitaram em trazer a sua face mais pesada para um festival onde o Metal é sempre visto como um primo estranho e afastado que convém evitar sempre que possível. Não é, por isso, surpresa que Metal Machine Music tenha sido presença constante num alinhamento muito mais virado para a já longa fase mais tardia da banda. Não houve direito às interessantes misturas entre kraut e EBM que marcaram os primórdios da banda de Dusseldorf mas nem por isso a estreia em Portugal deixou de corresponder às expectativas. “The Dawning Of Doom”, “Nazis Auf Speed” e “Machineries of Joy” marcaram uma actuação vertiginosa que mostrou o lado mais interessante da mistura entre o Metal e o Industrial. Também deste transpor de barreiras se faz o Entremuralhas pelo que dificilmente se poderia encontrar melhor banda para encerrar o segundo dia do evento.

Dia 3 (27 Agosto)

O regresso ao palco da Igreja da Pena deu-se com os espanhóis Har Belex que encheram o final de tarde com sons tradicionais e típicos do Neofolk mais canónico. Não dando nada de novo foi uma agradável incursão num género que tem tradição de sobra no festival leiriense.

Os italianos Geometric Vision deram bem melhor conta de si que os compatriotas no dia anterior. Se nunca vão poder ser acusados de originalidade o mesmo não se pode dizer quanto ao dinamismo e até um certo magnetismo (fruto também do espaço, não haja dúvida) do quarteto. Com tantas bandas a fazerem o mesmo, os autores de Virtual Analog Tears conseguem uma coesão que não é fácil encontrar e o concerto acabou por se revelar numa agradável surpresa.

No Palco Alma os italianos (uma verdadeira invasão) Ianva exploraram as pedras das ruas parisienses feitas musa pelos simbolistas franceses ao mesmo tempo que se entretinham a entrar em estruturas quase progressivas e de grande riqueza composicional. Se é verdade que nem sempre a intensidade conseguiu corresponder ao imenso trabalho por detrás de cada tema, não é menos verdade que quando tudo se conjugava até as velhas muralhas do Castelo de Leiria se vergavam em sinal de respeito.

Foi já em pleno breu que os franceses (outra invasão, já agora) Corpo-Mente encerraram o palco mais longínquo do festival naquela que foi a mais surpreendente actuação do festival. Gautier Serre e Laure Le Prunenec estiveram na edição transacta do Entremuralhas com Igorrr e voltavam com algo bem diferente. Misturar trip-hop com voz operática tem tudo para dar errado ainda mais quando a veia condutora é uma sensibilidade Prog Rock a tender para as viagens mais épicas. Em álbum a experiência soa tão bem como parece. Ao vivo a história é bem diferente. Talvez porque as viagens são bem mais ruidosas e experimentais ou talvez porque “um pouco” de Black Metal torna tudo melhor, por muito breve que seja. Um sem fim de contra-ordenações aparentemente incoerentes que se tornaram num dos melhores concertos desta edição.

O estado de graça da organização prolongar-se-ia com os suecos Kite. Psicadelismo electrónico, uma voz verdadeiramente distinta e um ambiente cerimonial marcaram o início do fim do Entremuralhas mas a despedida não poderia ter começado melhor uma vez que o duo arrancou para uma actuação densa mas com diversos momentos de aventureirismo onde de repente se estava a ouvir OMD (ou quase) para nos minutos a seguir se dar um mergulho no Dark Ambient. Intrigante e complicada, a abordagem tem um travo difícil mas a partir de certo ponto a estranheza dá lugar à libertação provocando uma viagem com contornos de elevado interesse.

Se o último dia foi marcado por surpresas agradáveis, os belgas Vive la Fête acabaram por corresponder às expectativas: Synthpop que roda em desfiles de moda com tudo o que isso acarreta. Olhar para a figura de Els Pynoo em busca de motivos para suportar o concerto tem os seus limites quando tudo o resto é tão plástico pelo que acabou por ser um fim algo insípido para um festival que tem um rasgo fora do comum. Nem a Fade In acerta sempre mas com tamanha obra também isso é facilmente ultrapassado.