O potencial era enorme, e foi cumprido. Haverá outra voz no nosso rock como a de Adolfo Luxúria Canibal? Haverá alguém que sussurre, grite, e declame como ele faz nos seus Mão Morta? Um espectáculo onde o teríamos a declamar poesia com acompanhamento musical soa a algo perfeito, uma ideia com um potencial enorme. E se os poemas são de Mário Cesariny, ainda melhor.
Foi num cenário parecido ao de uma sala de leitura, com Adolfosentado numa mesa com dois livros à frente e os restantes músicos no palco também santados (excepto o do contrabaixo), que se ouviram aqueles poemas como antes nunca se tinha ouvido. Não foi só a sua voz que impressionou: os próprios músicos foram notáveis, nos ritmos e melodias com que vestiram a cada poema, transformando-os quase em canções (sim, canções que por vezes soaram a algo que ouviríamos num disco dos Mão Morta). O piano, de António Rafael, foi o mais importante instrumento em palco, definindo a base sonora que os outros restantes, contrabaixo e guitarra eléctrica, iriam seguir.
A união entre a voz de Adolfo (com a presença de sempre: imponente) e os instrumentos foi, sem dúvida, uma surpresa para quem esperaria algo mais simples. Os arranjos eram complexos, obviamente pensados e ensaiados, e perfeitos para cada poema, ajudando ao seu processo de criação de um ambiente. Veja-se Voz Numa Pedra, por exemplo, um dos melhores momentos, que viu o melancólico piano de Rafael acompanhado pelos quase gritos deAdolfo; ou, talvez o auge da noite, o incontornável You Are Welcone to Elsinore, que foi talvez o que mais impacto teve, com o seu ambiente soturno e surpreendentemente envolvente.
O público, sempre no mais puro dos silêncios, aplaudia satisfeito no final de cada canção, visivelmente satisfeito com o que ouvia. Poderia temer-se que alguns fossem apenas pela presença de Adolfo, sem saber o que esperar, mas não foi o que se viu; viu-se, isso sim, um público perfeitamente ciente do que a noite ia ser, e a recebê-la da melhor forma possível. “Agora estou a ficar com vontade de ir ver um concerto dos Mão Morta”, diz alguém atrás de mim. Com aquela voz, percebe-se. Não há, de facto, ninguém como Adolfo (que estava ali, sentado, a matar ocasionalmente mosquitos com a mão e a esfregá-los na mesa), cuja presença se sente mal entra na sala, e cuja voz ecoa além das paredes desta.
Foi uma noite sempre consistente, quase sempre com poemas de Cesariny, que viu no entanto um dos maiores momentos num texto que foi (ele não o especificou, mas imaginamos que é dele) feito pelo próprio Adolfo, sobre a ambiência de Londres. Um dos momentos mais mordazes a nível de palavra, e mais complexos a nível instrumental (aquela guitarra e aquele feedback…), que chegou já perto do fim, quando a noite já estava ganha há muito. O resto foi o que se viu: a alma de um poeta mostrada por uma voz a quem esta assenta, acompanhada por instrumentos que souberam vestir o que se ouvia. Espera-se agora que tenhamos a sorte de ver a iniciativa repetida por Lisboa rapidamente. Porque, até lá, não voltaremos simplesmente a ouvir poesia como naquela noite.