Lisboa põe-se à escuta de um estalo aveludado, um cão que rosna grave ao dono que lhe pega toda as noites – a guitarra de Carlson. Doma-la num ensejo de repetições, na profana homilia dos que trocariam o mundo ali mesmo por seis cordas de ferro. Vemo-la solene em “There Is A Serpent Coming”, observamo-la de pálpebras grossas entre o adormecer e o acordar de “The Bees Made Honey In The Lion’s Skull”. São estas as prosas de Earth, enormes sonilóquios ditos à cabeceira. Tomam Morfeu por real, emaranham a convulsão do sonho na insegurança do despertar.

Adrienne prescreve aquela cadência prosaica – firme, pontual, inquebrantável – de uma implosão por acontecer, mas é na guitarra de Dylan que a vida se decide. Pelos calos granulosos, as rugas carmesim e as pardas tatuagens. Pela honestidade do folk americano com a boca cheia de deserto. Pelos vibratos gordos de charme e os acordes fulvos à espera de falar. Em Lisboa, uma «nicer Phoenix» como ele arrisca ao microfone, os Earth forram-se de meta-realidades num cancioneiro sem verbo ou substantivo. “Even Hell Has Its Heroes” é um voo arquejante pelas manchas blues que a morte traz aos braços, enquanto “Torn By The Fox Of The Crescent Moon” enche-se de coragem para dançar na contra-luz que o amplificador sangra.

“Orouboros”, essa, nasce dos anos em que Dylan e Kurt trancavam Seattle no feedback mais displásico. Passeia-se agora diferente nos jardins oblongos de “Hibernaculum”, vestindo colete country e sentindo o formigueiro que a carpintaria do tempo oferece. Chamem-lhe alquimia do passado, a arte tonitruante de alterá-lo noite após noite; é ela que redescobre “High Command” com a eloquência da eternidade – argumento final do verdadeirsouthern lord.

Filho da Mãe: a acústica que anseia. Há nas performances de Rui Carvalho a honestidade artesã que mastiga a imprecisão como essência maior. O erro, o acorde ao lado, o eco que vem das pancadas surdas numa guitarra lavada em suor. Vem de dentro e magoa.