O Clubbing Optimus de 5 de Novembro reuniu um cartaz histórico (X-TGUlver e Burnt Friedman & Jaki Liebezeit), públicos diferentes, ou mesmo improváveis, e fez a escolha de deixar o melhor para horas demasiado tardias. No entanto, mesmo não se sendo de ferro, há quem tenha vontades metálicas e tenha aguentado até ao fim dos concertos na Sala 2 da Casa da Música.

Com uma pontualidade inquestionável, os X-TG, que é de certa forma uma abreviatura para Ex-Throbbing Gristle, começaram a sua actuação na Sala 2. Realmente, Genesis P-Orridge abandonou o projecto no início da semana que passou, mas em nada abalou os planos dos restantes três membros, que avançaram com as suas datas e já actuaram no Porto com o novo logótipo e com o tal nome novo.

Aliás, a segunda música do alinhamento, segundo o frontman Peter Christopherson, foi a primeira a ser criada enquanto X-TG. Uma sucessão de sons graves estabelecia o andamento para uma batida quase aleatória, ruídos maquinais e vozes processadas, pintando com os seus tons fabris do resto da actuação o ambiente de desconforto e alheamento que caracterizou a actuação dos londrinos.

Com uma interacção reduzida, a banda foi orientando o público através de palavras bem escolhidas através da sua experiência exclusivamente sónica, admitindo umas puras verdades e uma ou outra meia-verdade. A que menos convenceu foi a afirmação de que “o melhor em X-TG é que nunca [sabem] bem o que se está a passar.” Sentados em secretárias, orientadas para um centro imaginário, os movimentos lentos dos três membros da banda eram meticulosos e reflectidos, quase como se estivessem a elaborar um importante trabalho de laboratório.

Esta especificidade de cada acto sentia-se nas músicas, que se revelaram verdadeiros estudos de possibilidades. Ao longo do concerto, foram raros os sons repetidos sobre as lentas batidas industriais, mostrando-se todos eficazes no seu propósito de levar toda a gente na Sala 2 da Casa da Música para fora dos seus corpos, como os próprios  admitiram. Um ruidozinho podia cair de forma intuitiva na música, mas notava-se que estava a ser utilizado por ter sido previamente escolhido e reflectido, ou mesmo inventado para o efeito.

Se há algo de que não podemos acusar este trio é de senilidade crónica, porque nota-se uma recusa de envelhecer orientada para a criatividade e para o verdadeiro desfile de objectos utilizados que foi o concerto. Desde um theremin alterado, a uma mini-trompete e a um iPad, muita coisa serviu para levar os antigos Throbbing Gristle a pôr a Sala 2 a tremer como uma velha fábrica.

Não menos pensado, mas dotado de um carácter mais natural, foi o concerto de Burnt Friedman e Jaki Liebezeit, o baterista dos míticos Can do Krautrock alemão. Um duo de percussão e sintetizadores que conseguia aliar um certo tribalismo, de batidas muito seguidas, filtradas (apesar de se tratar de um kit acústico de bateria), ao som muito urbano dos teclados discretos e carregados de efeitos.

Apesar do som artificial da bateria e dos sintetizadores, a fluidez da actuação do duo alemão tornou o ambiente da sala Suggia ligeiro e ameno, óptimo para descansar o corpo e para não deixar a mente arrefecer. Esta fluidez devia-se, sobretudo, aos quase 40 anos de actividade de Liebezeit e a sua desenvoltura num kit de percussão sem bombo nem pratos de choque, conseguindo dar à actuação um balanço constante e liberdade a Friedman para extravasar calmamente com os seus sintetizadores perante um público que foi minguando. Aliás, perto do início do concerto dos noruegueses Ulver, a sala Suggia estava relativamente vazia.

Esse vazio que se sentia, definitivamente, na Sala 2 por volta das 2h30, quinze minutos antes de Kristoffer “Garm” Ryg e companhia entrarem em palco. Na tela que projectou os vídeos, que são metade da actuação dos Ulver, podia ler-se o nome da banda em letras grandes seguida da frase “We come as thieves.” E assim foi: os noruegueses entraram com a voz e o portátil de Garm, outros dois computadores, uma bateria, sintetizadores e guitarra/baixo/piano, hipnotizaram a plateia com uma actuação incólume, parca em palavras, para saírem silenciosamente e sem cerimónias.

Mal os Ulver pisaram o palco, e enquanto um sol quente e bem alaranjado percorria a tela, começou a ouvir-se Eos, a faixa de abertura de Shadows of the SunGarm e a restante banda partilharam com a plateia músicas de praticamente todos os registos que editaram desde Perdition City (2000), passando mesmo pelo EP A Quick Fix of Melancholy (2003) e pela banda sonora Svidd Neger, demonstrando muitas das facetas em que este projecto vanguardista se move.

E se, em álbum, já se sente que os noruegueses não são uma banda de ignorar, na actuação da Casa da Música, os Ulver mostraram que o que fazem, fazem como se fossem os melhores. Aliando a música riquíssima e multifacetada (que, infelizmente, nem sempre foi bem tratada pelo som da pré-amplificação, tendo havido alguns momentos de confusão) à forte componente visual, que joga os vídeos arrojados com as luzes escuras, o concerto adquire ainda proporções ímpares. Esta não era, de todo, uma novidade, principalmente se soubermos que esta banda não é conhecida pelo seu preenchido calendário.

Depois da incursão em Shadows of the Sun e de terem passado pelo EP de 2003 e pela banda sonora, entraram em Blood Inside com uma polémica For The Love of God, que, com a sua negritude soberba, se impôs perante todos com um vídeo quase-obsceno, que cruzava imagens alusivas ao cristianismo com outras menos santas, de teor sexual. Um telefone a tocar indicou o início de uma Operator endiabrada e sufocante, em que um homem se tentava suicidar através de todos os meios possíveis no grande ecrã, nas costas dos nórdicos.

No entanto, foi mesmo em Perdition City, através de de Hallways of Always, em que Daniel O’Sullivan, o mais recente membro dos Ulver, conhecido por ser o cérebro dos Guapo e por ser membro dos Mothlite (entre muitos outros), se deu a ouvir claramente através do piano. Até então discreto, trocando entre a guitarra e o baixo,O’Sullivan, atrás do seu teclado, fez-se ouvir, traçando a harmonia e melodia principais para as músicas da faceta mais electrónica, quase a roçar o trip-hop, da banda e solando de uma forma brilhante.

Not Saved, retirada de Teachings in Silence, ditou o fim de uma actuação memorável em todos os aspectos e, sem dúvida, para mais tarde recordar. Musicalmente, os Ulver são uma banda literalmente impressionante e, ao vivo, essa é afirmação que tem de se elevar exponencialmente, dado todo o aparato com que tão bem se rodeiam. Tomando aquilo que os X-TG disseram, do propósito com que faziam música ser levar para longe o máximo de gente possível, os Ulver serão o seu perfeito oposto: o concerto aconteceu ali e naquele momento e toda a gente estava com os sentidos concentrados nessa actualidade. Só não sei é para que paragens foi a Casa da Música durante a cerca de uma e meia de concerto.