A indústria discográfica atingiu, nos anos 90, o ponto baixo que definiria o panorama musical actual. Foi nessa altura que a postura de colocar os êxitos lado a lado com as grandes promessas dos circuitos mais pequenos, adoptada pelas editoras major até à década de 80, foi preterida em prol da nova importância: vender, de preferência produtos rentáveis – por necessidade e para responder a este novo mundo absurdo, surgem as editoras independentes que todos adoramos e que continuam a lançar os ídolos de amanhã. Economicamente, a cultura é uma aposta de risco. Sempre foi. A London Records assinou os Sleep como uma promessa garantida, dando à banda norte-americano os 20 mil dólares mais arriscados da sua história, depois de Al CisnerosMatt Pike e Chris Hakius terem lançado o disco maior da onda sabbathiana, Holy Mountain. Em troca, pediram uma obra-prima. Conseguiram-no.

Do ponto de vista artístico, esta foi uma das maquias de dinheiro mais bem investidas de que me posso lembrar – vou arriscar, exagerar, e dizer que foi tão importante quanto o contributo do Vaticano para os tectos da capela sistina, como o mecenato da família Medicis, como a criação do Arts Council de John Keynes. Contudo, a editora major acabou por fazer o papel do segundo papa a ver os frescos de Miguel Ângelo no templo da praça de S. Pedro, que mandaria tapar aquilo que hoje todos admitimos ser um património mundial. Nos anos 90, as grandes editoras e a indústrias deixaram de apostar nos projectos menos conhecidos e em fórmulas novas (usando os lucros de apostas ganhas para cobrir os prejuízos das demais) em prol de um lucro fácil. Os Sleepnão o foram.

Quando o trio apresentou o seu trabalho mais arrojado, uma música com mais de uma hora de duração intitulada Dopesmoker, a editora rematou a situação com um simples “isto não vai vender/não pode passar na rádio” e deitou a perder um pedaço de história, reduzindo-a a uma cartada que não chegou a sair do baú. Seria lançada, cerca de meia década depois por outra outra discográfica e numa produção esquisita, mais curta e dividida em quatro faixas. As majors dos anos 90 assumiram a sua posição, que personifico neste caso: a história já não importa, o futuro muito menos – o agora é dinheiro e os 20 mil dólares oferecidos ao trio de São Francisco tinham de ser transformados num mero produto para rádio, para vender, avaliado nuns largos milhões.

Os Sleep não fizeram nada disso: a Dopesmoker é uma música que vai além do revivalismo-Sabbath em que o stoner e o doom, focados nos anos 70, muitas vezes caem. É uma ode não só à sétima década do século XX, mas também às possibilidades das escalas indianas e às grandes peças da erudita – é uma sinfonia de guitarras e baixos, cruzada com uma ópera tribal que exalta a estória de uma caravana fadada a percorrer e a distribuir droga, marijuana, haxixe, chocolate e viagens em forma de fumo e de ondas sonoras pela terra santa das maiores religiões da humanidade, Jerusalém. Assimilando a intensidade de um período romântico, objecto de fetiche do mesmo rock progressivo que maravilhava Matt Pike (que não se cansa de apontar em Mahavishnu Orchestra uma influência-mor), com o negrume do clássico presente no metal e com o ataque psicológico do riff cheio de LSD, elevado ao excesso da repetição, Dopesmoker é uma síntese de alguns dos momentos mais importantes da história da música, com as proporções futuristas de quem compreende frequências.

O que faz da última música dos Sleep uma obra incontornável não é, de todo, a sua abordagem revisionista do passado brilhante e absolutamente inspirador de quem abriu as primeiras portas para a percepção alterada da música. Mais do que estudiosos, Cisneros e companhia apresentaram um novo formato para o rock vindouro, para o metal imaginável e para a música ocidental no geral, com o ponto de partida no oriente. Dopesmoker consegue ser uma ponte entre as vontades mais primitivas da música pesada, que passam essencialmente por distribuir pancada da forma mais bruta, e pelo requinte mais psicadélico dos primeiros anos de rock à séria, e a música funcional, aqui reduzida ao consumo de estupefacientes. Não se deixem enganar – estes não são necessários para se apreciar a obra, mas a sua audição será, sempre, o melhor simulacro da sensação dopada até hoje criado.

Neste disco, foram derrubadas algumas fronteiras da música. Pouco importam os limites, o número de vezes que um riff pode, ou deve, ser tocado, nem tampouco que frequências são mais agradáveis ao ouvido humano – o corpo reage aos baixos e aDopesmoker, a sua mais de uma hora de duração, ouve-se com peito, com o sincronizar entre frequências cardíacas e a bateria animalesca de Hakius, enquanto Cisneros toma conta dos membros. A cabeça, essa, fica à mercê da acidez de Pike.

A reedição da Southern Lord faz jus ao que o disco sempre devia ter sido e exalta as mais graves frequências. Finalmente, um álbum que justifique o ritual de colocar o belo disco no leitor, de ligar a aparelhagem, de levar o volume ao limite, de provocar azia aos vizinhos e de abanar as fundações dos edifícios. A minha casa está mais frágil, mas eu sinto-me capaz de apanhar boleia da nave espacial que está a espreitar à janela.