A tentação de nos escapulirmos para o plano mitológico, brincando às metáforas e às alegorias religiosas como rebeldes meninos catequistas, apêndice espiritual se torna mal o nosso olhar descansa no breu de Amenra. Dá vontade, agrafados ao silêncio com que “The Pain. It Is Shapeless.” coage e instiga, de escrevinharmos sobre um ritual iconográfico desumano de tão incorpóreo que ele tenta ser – as designações “Mass”; a irmandade que se cognomina “Church”; a ânsia de enganar o fim por sessenta minutos que seja. Um crisma encíclico, noite após noite, feito não de murmúrios mas de gritos.
Talvez esse ímpeto de não querermos que a Sala 2 se circunscreva a quatro mundanas paredes, mas que em si oculte confidências que apenas basílicas e mosteiros enclaustrariam, seja o mais óbvio. Que aqueles cinco não sejam só tipos como nós, mas uma cúria que procura redenção nos graves e contra-graves de “Razoreater”. À segunda vez, e indo além do simbólico e espinhoso calvário para o qual “Am Kreuz” nos arrasta, percebemos por fim que os Amenra são a mais simples banda que encontrámos.
O solene encanto que “À Mon Âme” usa como escadote para se materializar não tem truque. É rudimentar, tal como rudimentares são todos os seus pendulares crescendos. A estrutura dos temas, construída sobre enfáticos movimentos cervicais e unida por uma acalmia que adiante sempre nos surgirá, não esconde genialidade. Daí que para eles tão fácil seja acoplar “Terziele” ao bradante quinhão de “Nowena | 9.10”, como se uma jamais tivesse existido sem a outra e como se os quatro anos de diferença que as separa fossem anulados como Herbert West anulou a morte das suas criaturas.
A singularidade de Amenra esconde-se na sua constituição. Os pardacentos feixes de luz, que inundam palco e alumiam uma tatuagem que nas costas de Colin quase funciona como adereço cénico, provêm da hulha de que estes belgas são feitos. Carbono. Do material que todos, sem campo para a mais ousada excepção, partilhamos. E, ao contrário desse ímpeto inicial que nos convida a distender sobre o etéreo, descobrimos que é no plano terreno que eles moram. O momento em que van Eeckhout nos encara, berrando as palavras últimas de “Silver Needle. Golden Nail”, mostra-nos carne e suor. Entranhas e vísceras. Um desassossego humano e não uma crente plenitude.
Não nos surpreende, por isso, a sua estreita correlação com o hardcore. Hessian e Oathbreaker locomovem-se como antecâmaras agnósticas do que Amenra se tornaria, repisando as fundições do planalto onde tudo começou. Os primeiros, pela seus filamentos black metal, afiançam-nos de que os The Secret têm competição europeia. Pese embora a ausência de Colin em “Mother Of Light”, e um microfone teimoso e sabotador, como deles demandar mais do que vinte minutos? Aplauda-se quem a noção tem de que a vitória é possível num só assalto. Os outros, de alma por agora sacrificada a “Eros|Anteros”, são agora Lennart Bossu e mais três. Os ziguezagues por onde o guitarrista os leva, num composto heterógeneo feito de post, black e sludge, mostram-se hoje menos directos do que aqueles que nos conquistaram em “Mælstrøm”. Faltou-lhes a antiga mordência desse disco, que pouco revisitado foi, e faltou-lhes um som capaz de evidenciar precisamente o que o também músico de Amenra anda a concatenar nos Oathbreaker. Quase dá vontade de afirmar que o riff de “Glimpse Of The Unseen” meteu num canto toda a restante actuação, que antecipou o cerimonial interlúdio anti-vida de Treha Sektori.