Diz-nos o senso comum que a arte é uma forma de expressão do ser humano. Já a forma como o homem o faz e o resultado material dessa expressão dependem de factores maiores que o homem e mais voláteis que aquilo a que estamos habituado.
Depende da mente, depende de uma forma de estar e até, porque não, de contextos diferentes, Veja-se o caso dos Protótipo [432], que pegam em conceitos exteriores à música – no caso a arquitectura e a engenharia – para edificar uma construção sonora primitiva, detalhada e até bárbara na forma como o som era obtido. A cortesia é das 432 cordas de guitarra entrecruzadas em forma de caixa cúbica, construída pelo arquitecto Bernardas Bagdanavicius e levada a palco para serem manipuladas e exploradas in loco por quatro homens. Valeu de tudo para lhe arrancar som, construir uma atabalhoada e aventurosa estrutura em primeira mão e vê-la crescer para depois a sufocar em sim mesma e vê-la desmoronar, pianinho.
O mote da manipulação estava dado para que Rafael Toral, também ele explorador, construtor e manipulador subisse a palco juntamente com Afonso Simões (Gala Drop); ambos assumiram o nome de Space Collective 2, uma composição do Space Programde Toral. Os quarenta e cinco minutos que se seguiram foram reflexo de pura loucura – ou, de forma mais eloquente, de puro pensamento livre. Toral, responsável por manietar vários circuitos da sua autoria, inundava o Maria Matos de um noise incessante e estridente, que apenas amansava com o seu comando. No mesmo sentido, Simões dominava a bateria com mestria e bel-prazer, obrigando a um constante e difícil exercício de concentração ora entre si ora entre Toral.
Ambos exerciam um estranho fascínio no domínio manipulador que exerciam sobre as suas máquinas. De repente, parece que o homem (o músico) procura criar uma estrutura para fechar algo selvagem e imaterial e logo inacessível (a música) como forma de compensação por não conseguir impor-se sobre o único elemento ainda totalmente selvagem: a natureza, criadora do homem. É porventura por isso, por querer interpretar o espaço natural e indomável, que Toral se continua a mover no terreno do indizível e do ruidoso, sempre a tentar perceber quanto de vertigem e tensão cabem no som e no espaço. E tudo parecia ter acontecido. O desafio fora imposto aos artistas de interpretar o aparente impossível. Ao público fora proposto analisar o ruído, a experimentação, a visão de outros exploradores pelos seus próprios olhos e ouvidos.
E quando se pensava que nada mais podia acontecer, chega a hora de Chris & Cosey cometerem um dos assaltos auditivos mais atrozes – no bom sentido, pois claro – de que há memória. Percamos quinze segundos a mencionar Chris Carter e Cosey Fanni Tutti como cofundadores dos Throbbing Gristle. A música que eles fazem, ou antes a multidisciplinaridade que eles assumem, deverá assomar à mente de forma automática. A valência negra, pesada e enigmática dos Gristle continua premente na abordagem lírica deste duo. Mas o risco que era assumido com Genesis P-Orridge aos comandos – em que a palavra “anti” era frequentemente atirada ao ar para funcionar como negação e oposição – surge agora algo dormente. O duo é mais conservador e alinhava o seu comportamento na criação de negros sons que evocam o industrial de Skinny Puppy, mas polvilhado com o ritmo assaz dos Eurythmics.
Estranha gente esta, que olha para o pecado como móbil e para o prazer como regra dourada, acima de todas as outras. Um pensamento perturbador, agravado pelas imagens projectadas (viu-se pornografia vintage, trips alucinogénias e Luis Buñuel) que ainda assim não conseguiam perturbar tanto quanto a música. Fria, impessoal, maquinal e de batidas monolíticas, impôs-se esmagadora sobre nós e atira-nos para aquela Berlim reunificada em que tudo é indústria, tudo é novo e fascinante.
É talvez por esse fascínio tão presente e irracional – aguçado pelas texturas tradicionais do trompete e da guitarra – que a tendência seja para abraçarmos a industrialidade e ignorar que esta é, à partida, maligna. Mesmo quando as projecções do duo acentuam propositadamente a malvadez, a máquina leva sempre a melhor sobre a mente. As batidas declaradamente techno, o feedback distorcido da guitarra, a voz lânguida… Tudo contribui para a manipulação não do som, mas da mente do homem que, subversivo, acaba por se deixar levar e se entrega de corpo e alma, com os braços no ar, ao ritmo de Chris & Cosey.
Curioso? Nem tanto se pensarmos que, tradicionalmente, cedemos facilmente à bruxa e não à fada, ao diabo e não ao querubim, à prostituta e não à rectidão. No fundo, a atmosfera malévola do duo britânico é uma réplica da nossa vida, do nosso dia-a-dia, em que a luxúria e o prazer da carne estão sempre prontos a despertar.