Poucos nomes na história do krautrock terão o estatuto de Michael Rother, pelo que ser a banda escolhida para acompanhar o músico alemão quando este decide revisitar material de Neu!Harmonica ao vivo é sinal de que se está a fazer algo bem. É o caso dos Camera, que se podem gabar de ser os recipientes de tão ilustre escolha, apenas dois anos depois de iniciarem actividades (e intensa foi essa actividade, pelo menos a julgar pela lista de concertos que se encontra na página da banda) e com apenas um álbum editado. No Verão passaram pelo Milhões de Festa onde se cotaram como uma das mais bem recebidas bandas do festival e agora estão de volta ao nosso país para jornada dupla, dia 13 no MusicBox em Lisboa e dia 14 no Plano B no Porto, a propósito de mais um TRIPS à moda do Porto.

Igualmente empenhados na sua viagem estão os The Cosmic Dead, sendo o concerto no TRIPS precedido pela sua estreia em Portugal, no dia 13, no Centro Cultural do Cartaxo. Ainda não tinham um ano de vida quando se viram a tocar um concerto improvisado com Damo Suzuki dos míticos Can e, apesar de serem claramente uma banda de palco, contam já com 8 lançamentos ligados entre si pelo ambiente formado nas extensas composições. A autoproclamada “banda de tributo a Hawkwind” provém da Escócia e a influência do space-rock britânico é clara, mas tanto os naturais de Glasgow como os alemães Camera citam um outro género como uma das suas principais inspirações.

Estarão brevemente em Portugal, sendo que no dia 14 tocam juntos no Porto, como é que encaram esta visita ao nosso país?

Camera: Vai ser bom sair das ruas cinzentas e chuvosas de Berlin por uns dias para ir a Portugal. Quinze graus, whoo!

The Cosmic Dead: Mal podemos esperar por chegar a Portugal. Vai ser o local mais longe de casa nesta tour e há algo de belo nisso.

O nome do evento em que vão tocar, “TRIPS à moda do Porto”, é uma referência a um prato tradicional da cidade, à base de feijão, tripas e carnes variadas. Interessados em experimentar?

Camera: Feijões são óptimos, mas como o Franz é vegetariano, nem todos nós estamos particularmente ansiosos por essa experiência.

TCD: Não – não como carne! Fico-me pelos feijões, haha.

Como é que se descrevem musicalmente?

Camera: Todos temos um background musical diferente, mas todos gostamos de escutar sons, ruídos, paisagens sonoras e música mecânica e repetitivamente hipnotizante. É isso, essencialmente, que nos liga.

TCD: Musicalmente, descrevemo-nos como muito felizes.

Os estilos mais populares na época em que cresceram, como o britpop e o grunge, concentram-se em músicas curtas e lineares. Conseguem lembrar-se do vosso primeiro contacto com composições longas e os géneros que vieram a adoptar?

Camera: Para além do grunge e do britpop, também o techno era bastante popular nos anos 90. Por causa disso, entrei em contacto bastante cedo com música que não seguia a fórmula tradicional. Acho que foi uma influência bastante grande para mim. Mais tarde, foi bom descobrir que a abordagem do techno também se adaptava bastante bem a outros géneros e que isso já tinha acontecido no passado.

TCD: Lembro-me claramente que a primeira vez que ouvi o “EP+6” dos Mogwai me deixou profundamente comovido. Antes disso, quando ainda era criança, ouvia techno e house, géneros que sem dúvida nos inspiraram – o objectivo da nossa música é criar uma experiência que cause uma reacção física. Se as pessoas se moverem nos nossos concertos, tivemos sucesso. Todos nós gostamos de música desde que esta seja real.

Desde então, o vosso gosto musical sofreu alterações significativas?

Camera: Sim, sem dúvida. É como uma porta que se abre e te permite descobrir aquilo que há para além dela. Com o passar do tempo vais encontrando coisas cada vez mais estranhas e interessantes, e passado algum tempo em que maioritariamente te concentras em cenas experimentais que fogem aos padrões clássicos, passas a ter uma apreciação diferente das estruturas musicais, pelo que canções mais tradicionais se tornam interessantes de novo.

TCD: Sem dúvida. Mas não houve nenhum momento de “Eureka!”, foi antes o descobrir gradual de uma grandeza primária.

A música psicadélica aparece geralmente associada a substâncias intoxicantes. Tanto do ponto de vista do músico como do ouvinte, qual é a vossa abordagem neste caso? É algo que vos influencia a forma de escrever e apreciar música?

Camera: Para nós acaba por não ser muito importante quando tocamos ou escrevemos, pelo menos não para todos nós. Claro que temos experiências passadas e é algo que pode ajudar a sentir o que estás a ouvir de forma completamente nova, mas a partir de certo ponto não é algo que seja necessário. Podes encontrar todas aquelas sensações ligadas às substâncias psicadélicas sem as usares, desde que já tenhas passado por elas antes.

TCD: Não. Para nós, a música que fazemos não é uma tentativa de comunicar ideias metafísicas, mas uma forma de nos sintonizarmos com a realidade que é a existência – o espectáculo do ser, do ser-se. Se as pessoas querem misturar a nossa música com outras substâncias, tudo bem, mas não é, de todo, essencial.

Esta não vai ser a primeira vez que tocam juntos, visto que ambos passaram pelo Roadburn. Que tal foi tocar lá?

Camera: O Roadburn é um grande festival e foi uma honra para nós tocar lá. O Walter [organizador] é um tipo muito simpático e vê-se uma entrega genuína naquilo que faz, o que torna as coisas mais pessoais. Pela forma como está presente e fala com as bandas, percebes que está muito interessado em que elas estejam confortáveis.

TCD: O Roadburn foi óptimo! Tivemos um público grande e visceral. As pessoas pareceram verdadeiramente receptivas à nossa música e à nossa mensagem, e foi perfeito.

Falando em Roadburn. Os Camera tocaram com o Michael Rother no Afterburner, num concerto em que ele revisitou material de Neu! e Harmonica. Já os The Cosmic Dead tiveram uma experiência semelhante há uns anos atrás com o Damo Suzuki em Glasgow. Que é que nos podem dizer sobre estas colaborações, é algo que se poderá vir a repetir no futuro, seja ao vivo ou até mesmo em estúdio?

Camera: De momento não temos planos concretos para qualquer tipo de colaborações futuras, mas quem sabe? Talvez tenhamos uma jam conjunta um dia ou mesmo novos concertos. Aquilo em que estamos mesmo concentrados agora é em gravar nova música.

TCD: É algo que pode acontecer, porque adoramos a música desses artistas, mas há tantas coisas a acontecer ultimamente – estamos animados com todas as possibilidades que temos neste momento de trabalhar com músicos diferentes.

“Todos gostamos de escutar sons, ruídos, paisagens sonoras e música mecânica e repetitivamente hipnotizante” (Camera)

Quais foram os vossos melhores e/ou mais estranhos concertos?

Camera: O mais estranho foi provavelmente um concerto no primeiro de Maio nas ruas de Berlim. Tocámos em Kottbusser Tor [estação de metro na zona de Kreuzberg] rodeados por uma data de manifestantes e polícias, num ambiente bastante cru e volátil. Também foi um dos concertos mais curtos que já demos, já que ao fim de alguns minutos a política parou-nos e ficou tudo exaltado.

TCD: O mais estranho pode ter sido no Flying Duck, na nossa cidade-natal, quando a bateria foi parar ao público e alguém começou a tocar por nós… ou no Mono quando todo o público levou instrumentos e nos acompanhou…ou quando tocámos num armazém às 4 da manhã servindo-nos apenas de um harmónio e de uma guitarra acústica. Já tivemos demasiados concertos estranhos para escolhermos apenas um. Quanto ao melhor, não faço ideia, mas foi sem dúvida algures na Europa.

Dado que o vosso estilo de música tem uma componente visual forte, quão importante é isto para vocês?

Camera: É importante – no passado, o artwork era maioritariamente a primeira coisa que o ouvinte encontrava sobre a música, mesmo antes de a ouvir. Mesmo com a revolução digital, isso ainda ocorre às vezes nos dias que correm. Sobretudo é importante porque cria uma imagem na cabeça de quem está a ouvir a música e nesse sentido pode contribuir para aquilo se retira da música em si.

TCD: É uma forma muito importante de alargarmos a nossa estética e mensagem a outro plano [Julian Dicken, o baterista da banda, é também o responsável pela criação do artwork de vários lançamentos].

Agora para uma série de escolhas complicadas:

Álbum de Hawkwind preferido?

Camera: Como fã de mecânica quântica, tenho de dizer “Quark, Strangeness & Charm”.

TCD: In Search of Space.

Amon Düül ou Amon Düül II?

Camera: Amon Düül.

TCD: Amon Düül II.

Neu! ou Can?

Camera: Can!

TCD: Impossível de escolher, gostamos demasiado das duas!

Finalmente, o que guardam para 2014?

Camera: O que quer que seja que encontremos entretanto e decidamos levar para lá. É possível que o segundo álbum seja um desses objectos.

TCD: Uma separação e uma reunião com exactamente a mesma formação. Novos álbuns, novas tours, maiores explorações. Ainda há territórios a visitar.