O céu estava limpo quando a noite assumiu o seu rumo, na Casa da Música. Há quem diga que foi Bill Callahan que trouxe a chuva de volta ao Porto, mas, admitamos, os primeiros sinais de dilúvio surgiram imediatamente depois da actuação de Circuit des Yeux, com a sua voz afinadamente sofrida sobre harmonias melancólicas de guitarra.

Mas há muito mais na música da norte-americana de 24 anos para além do mínimo necessário para se viajar o mundo como singer-songwriter. São, ainda, poucos os anos que lhe pesam em rugas, mas os calos nos dedos já contam primaveras desde 2008, altura em que começou a editar. Haley Fohr, amadurecida ainda num corpo juvenil, disfarça a sua infantilidade cândida e a sua fragilidade na força de uma voz dota de uma amplitude notável. As suas colocação e capacidade de projecção rivalizaram durante toda o concerto com a pujança do amplificador de guitarra — o desafio foi levado ao extremo da dualidade orgânico vs. eléctrico quando a modelação da sua guitarra de doze cordas disputou protagonismo com as cordas vocais de Circuit des Yeux em “I’m On Fire”. A actuação revelar-se-ia, contudo, equilibrada nas melodias simples, dedilhadas numa calma apenas silenciada por uma voz que consegue pesar como a cruz de Antony sobre melodias de uma crueza que não deixaria um Michael Gira feliz (e ninguém quer saber de uns Swans bem-dispostos).

Bill Callahan, por seu lado, goza do condão de ser uma personagem de estatuto lendário. O senhor Smog entrou para o palco com a plateia ganha — e lidou com isso com a pausa que apenas alguém digno de tal devoção manda. Sendo o único da banda que se encontrava de pé, humildemente confiante daquilo a que se propôs, percorreu o mais recente disco, “Dream River”, sem deixar de parte alguns dos clássicos fundamentais do seu cancioneiro. Contudo, reduzir à execução eficaz um concerto que prezou pelos bons arranjos, libertando Callahan para o encantamento da voz, da guitarra que agarra a música e do ocasional namoro com a harmónica, seria francamente injusto.

Não raramente, a canção pop é exagerada a um barroco de possibilidades e acontecimentos que se podem, em suma, ensacar em ruído. Tudo na prestação de Bill Callahan e dos três músicos que o acompanharam foi despido até ao essencial, e todo o ritual de partilha com o público se apresentou como um corpo completo. O kit de bateria não levou para a clássica “Dress Sexy at My Funeral” mais do que um toque de mãos, nem o baixo servia para ser tocado com mais intensidade do que a necessária. Para a guitarra de Matt Kinsey, reserva-se o destaque da sensibilidade e da colocação. Sempre sem procurar a atenção desmedida, foi com aromas que o guitarrista enriquecia as canções do norte-americano, explorando desde o feedback da guitarra ao reverb mais quente.

Não foi precisa insistência para que o encore acontecesse: Bill Callahan, seguindo o mote de César, “veni, vidi, vici”, saiu do palco vencedor para não tardar a reentrar na sala Suggia sob o aval de um público que não se coibia de aplaudir enfaticamente. A despedida levou-nos até ao seu primeiro disco em nome próprio, pela melodia de “Rock Bottom Riser”. Já lá vai quase uma década, mas está claro que o cantautor ainda sabe os seus truques.