Uma solidão de animais amarra-se ao pescoço de Lisboa. A chuva arruma-se por onde pode, entre janelas que se fecham e portas que se trancam, numa lenta costura de abandono. As semanas começam todas assim – embalsamadas num cinismo de ruas apertadas, porque afinal vem aí tudo outra vez.

Caminham os Vaee Solis pela geometria escrava. Amparam-se no seu sufoco, no seu próprio desconforto, naquela ânsia de abrir, rasgar a garganta ao Sabotage para nos arrancar uma verdade que se calhar nem temos para lhes dar. Somos impostores. Fingimos uma tranquilidade de moldura, metemos uma pose de conforto, mas não estamos nem tranquilos, nem confortáveis à frente deles. Talvez porque não vejamos os olhos de quem nos grita. E, por isso, aquele medo de criança, de sermos largados no escuro à fome crua dos espíritos, volta como uma surda assombração que só esperava pela noite certa para nos agarrar. Pelos pulsos, pelos braços, pelas raízes de uma morte escancarada nas guitarras que hoje são duas. Disfarçamos, fazemos de conta que está tudo bem, conservamos o ar de mau quando as luzes voltam. Os Vaee Solis já lá não estão e com eles levaram um bocado de nós.

Vaee Solis

Monta-se logo um bailado de cheiro a tabaco, feito pelos corpos que dançam banais entre o bar e a pista. Os Monarch estão ali, mas ninguém lhes liga até que as velas se acendam. Pequenas gárgulas de cera que queimam pelo ritmo dos acordes – lenta, lenta, lenta… mente. Um missal alegórico de terrores dilatados, ou uma marcha fúnebre que apavora, lido nas escrituras de Emily – murmuradas no sopro e erguidas no grito. O bruxedo de um bar que, ao repente, estica as paredes, se sotura de mármore e se faz catedral da cruz dependurada. Porque os Monarch têm aquela paixão sarcástica pelo oculto, o amor traiçoeiro pelo left hand path, dos que pegam no Ouija board para simplesmente passar o tempo. Tocam menos do que em 2014 e, como aí, vão-se outra vez embora com “I Got Erection” dos Turbonegro. Avisámos: eles não se levam assim tão a sério.

Monarch

Encontramos os Bell Witch ao balcão, pedindo que o copo se encha de vinho. Talvez porque um gole de tinto arraste o tempo para onde eles querem. Fazem as coisas hermeticamente, na clausura de uma melodia que se repete parágrafo a parágrafo. Um baixo tumular, à elevação dos mortos, que se solta da gaiola dos vivos para nos vir fechar as pálpebras. É possível que o segredo de tudo esteja na ausência – de pulsação, de relógio, de guitarra. São uma metade de pouco os Bell Witch, mas é por lhes faltar tanto que são maiores. Trouxeram-nos o sossego que o inferno tem. Quando lá chegarmos, havemos de lhes agradecer.

Bell Witch