Comecei a ouvi-lo já tarde, num horário que para mim ele não merecia. Mas ele, como eu, não parecia importar-se muito com isso. A voz grave, escura, quase sussurrante, mas tão perceptível estava sempre lá àquela hora, pronta a narrar três horas de música incrível. Àquela hora nocturna, “A Hora do Lobo” fazia desfilar no éter mais música que os meus ouvidos tinham ouvido até então. Nem sei bem que idade tinha, mas não passava de um mancebo que gostava tanto de Limp Bizkit, como de Pink Floyd ou Phill Collins e se hoje tenho um ouvido relativamente educado, devo-o àquele espectro que passou uma vida atrás de um microfone, a dedicar-se à música e que passado tantos anos idolatro e recordo como se ele ainda estivesse vivo. Afinal, falamos do homem que, juntamente com o John Peel, me dá vontade de todas as semanas brincar à rádio. É a minha pequena homenagem.
O Miguel Esteves Cardoso disse e com razão que «a música do António Sérgio é a melhor». É aquilo a que chamam uma verdade insofismável. Tentem lá refutar a afirmação sobre o último homem a manter um programa de autor numa grande emissora nacional! “A Hora do Lobo”, tal como o “Rotação” ou o “Som da Frente”, nunca olhou a playlists, tabelas ou essas coisas feias que regem as ondas hertzianas hoje em dia. Durante 40 anos, o António Sérgio dedicou-se a passar a música que ele gostava, que ele achava pertinente, que para ele tinha qualidade. A “outra” música, que não passava em todo o lado e que, não fosse ele, talvez eu e muitos antes de mim nunca teriam ouvido. Bolas, foi ele o primeiro a trazer Motorhead à radiofonia portuguesa – vénia!
Lembro-me de estar de tal forma hipnotizado pela frequência 88.7 FM, que era raro apontar o nome das bandas. Um erro terrível, mas eu não queria perder nem um bocadinho de tudo aquilo que me chegava, tão diferente e imprevisível. E não podia, de forma alguma, perder os intervalos entre as músicas em que o Sérgio falava para todos nós. Lembro-me de mim assim e imagino todos os pais, tios, sobrinhos, padrinhos e homens feitos antes de mim a sofrerem do mesmo. Imagino quem terá curtido à grande o “Lança Chamas” (o programa épico de heavy-metal, muito antes do António Freitas com o seu “Alta Tensão”), quem terá deprimido e apaixonado às custas do “Som da Frente”. Para tudo isto acontecer, bastava ligar o rádio à hora certa.
Foi esta vontade de fazer acontecer, de mostrar a diferença e a irreverência que marcou a vida do Sérgio. Foi o que o fez tirar da garagem os Xutos e Pontapés. Agora, que os vemos uma média de doze vezes por ano e à borla, não lhes ligamos pevas. Mas recuamos 30 anos, e olhamos para uns putos com vontade de serem punks e que ninguém queria levar a estúdio. Pudera, ‘Sémen’ e ‘Mãe’ (sobre matricídio e parricídio) eram os temas-bandeira da jovem banda, a que se juntava ‘Avé Maria’. O Sérgio levou-os a estúdio, gravou e produziu cinco temas e ainda passou ‘Avé Maria’ na rádio. Foi impedido, censurado, proibido. Mas continuou a tentar e ‘Sémen’ acabaria mesmo por se tornar um tema de culto da banda. Por isso é que a actuação dos Xutos e Pontapés ontem à noite fez todo o sentido: eles, tal como a rádio em 82, eram ainda embriões da liberdade total que hoje todos temos, mas que graças à vontade do Sérgio, conseguiram singrar.
A dedicação do António Sérgio era constantemente visível. Nunca se deixou abater quando as playlists se integraram no éter nacional; não desapareceu quando o empurraram da Rádio Comercial para a Best Rock; regressou pela porta grande à Comercial e mostrava três horas de música nova de terça a sábado; instalou-se como rei, dono e senhor na Radar como o seu “Viriato 25”. Sempre sem medo, não houve nada que o Sérgio não tivesse feito.
Sempre com a preocupação de divulgar, mostrar e recomendar bandas novas, que a serem portuguesas tanto melhor. Os Peste e Sida passaram por lá – gravaram a bela raridade que é o único acústico punk em Portugal – e em palco desfilaram clássicos com uma genuidade imensa e intocável; os Moonspell foram tantas vezes agraciados pelo radialista, que nunca teve problemas em encaixá-los com estilos mais límpidos – belíssima setlist ontem à noite, um corte transversal na carreira da banda; os Dead Combo, carismáticos como sempre, deram uma pitada de western à noite (Jim Jarmusch, quando os convidas para fazerem uma banda sonora para um dos teus filmes?) e, como eu, recordaram os tempos passados a ouvir o António na rádio; os Linda Martini arrebataram o São Jorge – têm cada vez mais seguidores e, felizmente não sabem dar maus concertos; Os Golpes, lembrando os tempos do Corpo Diplomático e dos Heróis do Mar, também fizeram a festa. E bom, os Xutos e Pontapés – aquela aposta pessoal do Sérgio de há tantos anos atrás – gostando-se ou não, renderam a homenagem mais certeira da noite com os temas de culto que o radialista gravou.
Uma noite sentida e bonita, numa sala cheia, “pelo direito à diferença”. No final, a sensação de que assisti a um programa do Sérgio ao vivo: ali não se olhou a gostos, credos, estilos ou opiniões. Para mim, o António Sérgio ainda vive.