Custou caminhar até ao Hard Club para o dia 2 do Amplifest. Não era que nos faltassem razões para ir, ansiávamos pela descida aos infernos com Gnaw Their Tongues, queríamos ver com que espécie de drone o Stephen O’Malley nos brindaria, perceber o que as bandas da Church Of Ra fariam com as suas várias aparições e paramos por aqui porque na verdade tudo despertava curiosidade. O primeiro dia é que ainda nos pesava o corpo. Felizmente entre a serenidade que o Nate Hall nos deu e o mergulho na electrónica de Atila, quando chegou a banda que oJacob Bannon revelou no dia anterior já estávamos mais que refeitos.

Sala 1 pouco iluminada, pouco barulhenta. O palco negro e despido, apenas um foco a incidir forte nos braços e chapéu doNate Hall, sentado de guitarra em punho, longa trança pendente ao lado da cara ensombrada. Microfone à frente, pedais no chão e um banco com um livro e acessórios ao lado. Chega e sobra para o clássico singer-songwriter, daqueles à antiga que canta para espantar demónios, que sabe que tanto com a guitarra como com a voz às vezes a subtileza atinge mais quem ouve do que mil acordes em simultâneo. De inspiração voltada para o passado, recupera nomes como Hank Williams e Townes Van Zandt. Mais tarde aumenta um bocado os efeitos da guitarra e brinda-nos com umas linhas dos seus mais que subvalorizados USX. Acaba com a guitarra encaixada na bateria dos ? a emanar feedback enquanto lê do seu livro. Perfeito.

Foi daquelas performances em que a honestidade e fragilidade com que o músico se aparenta expor chega a ser arrepiante. Foi-o para nós, que saímos de lá com um sorriso no rosto e de corpo bem mais leve, como se não tivéssemos levado a porrada que levámos no dia anterior. Obrigado Nate Hall, volta sempre. LP

Poderia vir escondida na timidez de sobretudo, mas aparece bruta na pele de um bárbaro: a electrónica de Atila serve-se fria como a vingança adiada. Há um ajuste de contas que se faz naquele rectângulo cosido por quatro paredes – como um alquímico inventado ao pontapé, tira-nos o sol para decretar noite. O cadáver de Copérnico cuspido na cara, ali no Porto. E de repente, que nem satélites descarnados, com a cabelagem toda à mostra, orbitamosAtila pelas fracas luzes de beco que a porta da sala 2 – abre, fecha, abre, fecha – concede. Uma dança desnatural que oxigena no vácuo como uma planta que nasce a partir do cimento. EP

Surprise, motherfucker! Este ano o ? eram os Beastmilk! Okay,Grave Pleasures. Seja como for, grande surpresa nos preparou aAmplificasom. A banda apresentou-se bem mais aguerrida do que o lhe viramos no passado (sob qualquer uma das designações). Coesos e sob a batuta de um Kvohst visivelmente bem-disposto, dividiram a actuação entre “Climax” e o novo “Dreamcrash”, infelizmente sem recuperar nenhum tema de “Use Your Deluge”. Assim, foram temas como “Genocidal Crush”, “You Are Now Under Our Control” e “Nuclear Winter” a formar o que de melhor teve o concerto. LP

Meter os olhos em Syndrome é perceber que uma trincheira não se faz só de gritos e sangue. É nela também, pelos intervalos de silêncio que a guerra permite, que se escrevem cartas de saudade. Quando a artilharia de Amenra sossega, escutam-se baixinho os soldados – Mathieu, um deles, pega na caneta e desenhaSyndrome como pode: entre as bátegas de lama que a Flandres espirra. São versos esporádicos, prosas ocasionais de um conflito interno onde perdemos mais do que ganhamos – «because in life very little goes right». Mas importa contar. E Syndrome lá vai escrevendo torto por linhas menos direitas ainda, como poeta analfabeto que é, num assomo de alma angustiante. Depois, pronto, vieram os seguranças e obrigaram-nos a levantar o cu do chão – coisa chata esta de voltar sempre ao lugar de partida.

Os Wiegedood, esses, têm cheiro a pólvora na lapela. Ainda agora chegaram e já sabem que é preciso matar para não morrer: tocam alto, bem alto, um black metal que nos morde as mãos. Quando olhamos as marcas… pois, ali está ela, a dentada de um lobo – e não é preciso pensar muito no porquê. Fragmentos atmosféricos, obuses que nos explodem no peito sem segredo. O processo é rudimentar, artesanato simples que pesa como chumbo, arquitectura primitiva sem capitel como Schlieffen queria. Para quê pedir o complexo a quem é de trato simples? Os Sun Worship ganharam um adversário directo.

Depois vieram os Metz, com aqueles braços cheios de queimaduras – afinal é neles que o Kurt Cobain apaga o cigarro quando todas as noites volta para o caixão. Podiam ser os Olympia já que têm nome de cidade e o rip-off é descarado. Mas, na boa, também não vamos deixar de ouvir os Black Breath só porque eles gamam tudo aos Dismember e aos Entombed. São os 90s outra vez: uma Generation X que ganhou Instagram, os óculos donerd embaciados pelo feedback, um baterista com a melhor t-shirt do festival e um público que ainda tem um bocado de mosh para trespassar; a digestão faz-se melhor à chapada. Só faltou aos Metzpartirem os instrumentos e tocarem covers de Wipers, até porque, como dizia o bêbado, «If you’re going to try, go all the way». EP

Uma guitarra e seis amplificadores é uma bela proporção. Sobretudo quando se dá essa guitarra a alguém como o Stephen O’Malley e se o deixa sozinho num palco para fazer o que bem lhe apetecer. O norte-americano encheu a sala com uma quantidade incrível de densa distorção de forma mais despida e menos física que nos Sunn O))), numa hora de introspecção mediada por drone e minimalismo. Para quem dizia que o que era mesmo bom eram colaborações, deu dos concertos mais memoráveis desta edição do festival sem praticamente se mexer.

Depois do Stephen O’Malley ter dado uma categórica lição sobre o significado da expressão “MAXIMUM VOLUME YIELDS MAXIMUM RESULTS” tivemos os Amenra a encabeçar a sala 1 e a demonstrar pelo volume exagerado da actuação que não perceberam muito bem como é que a coisa se faz. É aquela diferença entre encher realmente uma sala de som ou simplesmente tocar alto para não se notarem falhas, infelizmente presentes logo desde a descoordenação entre o Colin e o Bjornno início. No entanto, poucas bandas terão tido uma sala tão rendida à sua actuação durante o fim-de-semana, o que diz muito sobre a eficiência de qualquer performance dos belgas. Das luzes e visuais, à postura dos músicos e à ausência de conversas ou pausas, tudo se adequa às cadências simples e tom emocional das composições, não sendo por acaso que é conhecida precisamente pela intensidade das suas aparições ao vivo.

Diziam eles uns dias antes do festival que queriam parar de tocar ao vivo para se concentrarem na escrita, pelo que para muitos terá sido das últimas oportunidades num futuro próximo para ver este concerto. É que desde um pouco antes do lançamento de “Mass V” e exceptuando as aparições acústicas, os Amenra têm essencialmente dado o mesmo concerto módulo, com permutações ocasionais do mesmo conjunto de temas, e a inspiração sentida no momento. Compreende-se a necessidade da pausa e nós cá estaremos à espera, seja apenas para trabalhos de estúdio ou para vermos um (literalmente) novo concerto dos belgas. LP

E, pronto, há sempre uns maluquinhos como nós que gostam de ir até ao fim. Estivemos no arraial burlesco que os Putan Club montaram há dois anos, quisemos ir para casa bem aviados de porrada com os VVOVNDS em 2014 e não nos perdoaríamos se virássemos agora costas a Gnaw Their Tongues. Vimo-los em estreia absoluta no Roadburn – eram cinco da tarde, fazia sol, e os empregados daquele barzinho chamado Cul De Sac não sabiam como tirar finos sem destapar os ouvidos, coitados. Alto cagaçal que foi. A versão Amplifest bolçou-se menos cacofónica, mas metam-se lá com aquela drum machine… Pois. A constrição borderline desfeita entre o primitivismo sexual e a misantropia meio grogue abriu as pernas e pariu, para o chão daquela sala não-estéril, um viscoso grumo de ódio que nos fechou a traqueia. Chamem o Heimlich agora. Foi até que o ar nos faltasse. E, se hoje escrevemos isto, talvez tenhamos falhado algures: não é suposto sobreviver a um concerto de Gnaw Their Tongues. EP