O segundo dia de Amplifest pode ser resumido em duas partes. Durante a primeira, o festival revestiu-se de peso, assumindo uma negra forma a que chamaremos “Black Shape Of Amplifest” onde os membros de Black Shape Of Nexus não só deram um concerto demolidor como participaram noutros dois (já lá vamos). No final, a luz chegou sob a forma de um concerto memorável deWovenhand no palco principal, apenas para ser imediatamente apagada durante a ritualística aparição dos Wolvserpent na sala 2. Atingido o momento alto do dia, o final acabou relegado para segundo plano, pese as interessantes presenças de Alhousseini Anivolla no main floor e de VVOVNDS a encerrar a sala 2.
As hostilidades iniciaram-se com um palco principal menos recheado que no dia anterior, fruto não só da recuperação a que o concerto de Swans obrigava mas também dos Black Shape Of Nexus não terem o nome dos YOB. Para aqueles que se aventuraram pelo Hard Club às três e meia da tarde de domingo esteve guardado o concerto mais sujo do festival. Com os b.son(diminutivo usado pela banda), não só não se vislumbra qualquer luz ao fundo do túnel, como o negrume se encontra em constante mutação, passando do sludge (sludge a sério, não aquilo que os Baroness fazem) a um doom repleto de noise com uma fluidez impressionante. Tanto somos lentamente arrastados por paisagens sufocantes como nos encontramos cercados de feedback e aquele balanço muito próprio de quem sabe combinar punk e doom à moda de Nova Orleães.
Depois de repescarem a abertura do concerto (“IV”) ao split comCrowskin, o resto da actuação foi focada no último álbum da banda de Mannheim, “Negative Black”. Assim que o feedback-tornado-riff às mãos de Geb e Ralf de “60 WV” se solta na sala 1 percebe-se porque é também o seu mais aclamado trabalho. Com Jan a preencher de ruidosa electrónica os espaços livres, a secção rítmica a cargo de Kuhn e Hauser dirige implacavelmente os pescoços dos presentes sem se tornar repetitiva ou abdicar de complexidade para o fazer, algo evidente para além de qualquer dúvida na avassaladora “10000 µF” com que encerraram o concerto. É no entanto Malte Seidel que se apresenta como centro gravitacional deste negrume. Para além do potente vozeirão que apresenta, a presença em palco é incontornável, encarnando nos seus peculiares movimentos e expressões todo o desconforto e negatividade que as canções do quinteto alemão encerram.
Durante os primeiros quatro concertos, apenas um não contou com a participação de ninguém dos b.son: o dos portugueses Bosque na sala 2. Com ou sem convidados, o funeral doom de por exemplo “Nowhere” enquadra-se perfeitamente na atmosfera negra que por esta atura tomara conta do festival. Na sua encarnação de concerto, a banda de DM (aqui encarregue exclusivamente de voz e guitarra) converte-se em trio com a adição de baterista e um segundo guitarrista. Infelizmente, ficou a imagem de uma formação ainda pouco coesa, tendo apenas a espaços traduzido fielmente a atmosfera criada em estúdio: ora a bateria soava algo mecânica ou as guitarras demasiado tímidas, sem aquelas camadas de eco distorcido tão fundamentais para o ambiente cerimonial que os caracteriza. Nos momentos em que conseguiram soar mais fiéis a si próprios, sobretudo quando a voz de DM enchia a sala e as duas guitarras subiam de intensidade, vislumbrou-se o que o projecto poderá um dia oferecer ao vivo. Tal como Pharmakon no dia anterior, ficámos com vontade de rever, pois tem tudo para ser ainda melhor.
Timidez sonora foi coisa que não faltou aos Conan, que beneficiaram (por mérito próprio, diga-se) dum som demolidor a atingir volumes absurdos sem que a clareza fosse minimamente beliscada. Com o trio britânico já se sabe que os objectivos são extremamente simples: tocar o mais alto possível, soar bruto, lento e sem merdas. Todos cumpridos com distinção, embora a simplicidade dos temas e a pouca variedade entre eles torne a hora de actuação algo excessiva (tivessem trocado o tempo de actuação com os b.son e estava tudo perfeito). Para além do som, imaculadas também as prestações dos encapuçados fundadores Jon Davis (voz e guitarra) e Chris Fielding (voz e baixo). O novo baterista, cuja identidade não foi ainda divulgado pela banda após a recente saída de Paul O’Neill, denotou ainda alguma falta de rotinas durante o início do concerto, tendo eventualmente estabilizado na sua tarefa de martelar sem rodeios a cabeça dos presentes.
O alinhamento incidiu maioritariamente no mais recente “Blood Eagle”, com temas como “Foehammer” e “Gravity Chasm” a demonstrarem ao vivo todo o seu peso primitivo. Do EP que os mostrou ao mundo, “Horseback Battle Hammer”, ficou guardada a peça de encerramento do concerto, “Satsumo”, que continua a ter um dos mais demolidores (e rápidos!) riffs que já escreveram. A grande surpresa saiu no entanto de “Monnos”, com a obrigatória “Hawk As Weapon” a ser levada para outros níveis de extremismo com a presença de Malte Siedel (apropriadamente encapuçado) como vocalista convidado. Ignorando momentaneamente as limitações da banda, para o catálogo que têm deram o concerto perfeito.
Da consagração dos Conan em palcos portugueses para uma notícia triste: devido a problemas familiares de IX, o guitarrista e vocalista de Urfaust foi forçado a ficar na Holanda para cuidar da filha. Decisão compreensível dadas as circunstâncias e de consequências rapidamente mitigadas, primeiro pela confirmação da banda para 2015 e depois com o baterista VRDRBR a aceitar o desafio da organização para uma jam com músicos presentes no festival. Assim, juntaram-se-lhe André Coelho e João Filipe dosSektor 304 e Jan dos Black Shape Of Nexus. O resultado foi uma sessão de ambient drone intoxicante que já seria impressionante mesmo que não fosse improvisada.
Com um pano de fundo formado por um belo conjunto de projecções a preto e branco e o constante drone impresso por Jan,VRDRBR guiava as operações com a sua característica abordagem à bateria, aqui com muito mais pormenores do que habitualmente, particularmente devido à constante interacção com a percussão de João Filipe, que ía dando um ar mais industrial aos procedimentos. Os toques finais eram dados por um André Coelho mais uma vez a um grande nível, ora a adicionar mais camadas de drone ora com as suas viscerais vocalizações. Nos minutos finais reduziram-se os ruídos para níveis minimalistas e, perante o louvável silêncio da plateia, criou-se uma atmosferakhanateana à base de voz e bateria. Um concerto que revela muito do gosto que os seus intervenientes têm pela sua arte e que certamente ficará gravado na cabeça de quem a ele assistiu durante muitos anos.
Encerrou-se o “Black Shape Of Amplifest” e dissipou-se por um tempo a escuridão. Chegava a hora de receber os Wovenhandpara uma hora e meia de pura inspiração da parte de David Eugene Edwards e companhia. Pelo segundo dia consecutivo subiu ao palco um dos mais intrigantes músicos em actividade (o outro sendo Michael Gira). Ainda em 2011 dava um dos melhores concertos do Roadburn sentado e pouco amplificado, curiosamente também a par duns Swans ainda com temas pré-reunião no seu alinhamento. Desde então que o trio deu lugar a quarteto e todo o folk restante se tornou num peso sem precedentes na variada carreira do músico americano. Isto, sem que a distinta personalidade do músico desaparecesse da música que cria e, pelo que se registou no domingo, sem que a intensidade que tem ao vivo se esmorecesse um pouco que seja.
Apesar de hoje os Wovenhand estarem o mais distantes que já estiveram do som dos 16 Horsepower, houve lugar para uma versão de “Horse Head Fiddle” num alinhamento maioritariamente dominado por “The Laughing Stalk” e (sobretudo) por “Refractory Obdurate”. A cover da banda de Edwards foi aliás a única a não ser retirada dos dois últimos álbuns, juntamente com o encore formado por uma “Whistling Girl” a solo e “Kicking Bird” com a banda. A certa altura ouvimos que estava a ser “o concerto de post metal do festival”, declaração curiosa dada a distância entre a banda e o género referido, mas compreensível quando estamos perante o peso com que foram interpretadas “Masonic Youth” ou “King O King”. Mais do que peso, intensidade foi a palavra de ordem. É verdade que Edwards teve um enorme magnetismo em palco, mas desde que se mudara para o formato eléctrico que ainda não tínhamos testemunhado a aliança entre a sua personalidade vincada e a execução do resto da banda. Depois do que vimos em temas como “Long Horn”, “Salome” ou “Good Shepherd”, não há como não estar rendido àquilo que osWovenhand são hoje em dia.
Terminado o grande concerto do dia do palco principal, nem deu para respirar antes do seu análogo na sala 2, cujo chão tremeu aos pés de Wolvserpent. Como dissemos acima, a escuridão não havia abandonado o Hard Club de vez. Voltou então para o mergulhar na sua mais densa aparição do fim-de-semana. Com uma loop station e uma boa quantidade de amplificadores ligados à sua guitarra, Blake Green e a sua guitarra criaram uma atmosfera absolutamente sufocante, sobrepondo feedback, ambientes e riffs que tanto vão beber ao doom/drone como ao black metal. Juntando o aterrador trabalho de guitarra às vozes que tanto tinham de sinistramente rasgadas como de profundos guturais e ao violento massacrar a que Britanny McConnell submeteu a sua bateria, tem-se apenas uma vaga ideia do extremismo que se passou naquela hora.
Extremo é mesmo o termo apropriado, não só pelos elementos isolados que referimos antes, mas pela forma metódica como cada um dos três temas que tocaram (todos de “Perigaea Antahkarana”) se vai desenvolvendo ao longo da sua elevada duração. Até a interpretação que Britanny McConnell faz da forma de tocar bateria é desconcertante e contribui para que toda a experiência assuma contornos de uma estranha forma de extremismo. Violinista de formação, instrumento que usou no começo de “Within The Light Of Fire” e “In Mirrors Of Water”, os movimentos com que aborda a bateria são muito pouco convencionais. Convencionais ou não, a tareia que nos proporcionou durante o segundo tema referido foi totalmente impressionante. O duo guardou-nos ainda “Concealed Among The Roots And Soil”, sessão última de tenebroso hipnotismo e ponto final num dos melhores concertos do fim de semana.
Black Shape Of Nexus, Conan, a jam de VRDRBR, Wovenhand e Wolvserpent em sete horas. Como dizia o Calvin, “que dias tão cheios”! Falemos então do elefante na sala. Até aqui não mencionámos a actuação dos Cult Of Luna porque quanto menos se disser sobre ela, melhor: mais depressa voltam as memórias dos álbuns e de concertos passados. Queríamos ouvir a banda que conhecíamos pela força que imprime às suas aparições ao vivo e encontrámos apenas uma pálida imagem dela. A qualidade de escrita da música está toda lá, não há propriamente erros na execução, mas também não há muito mais que isso: a postura foi mecânica e as movimentações pareceram forçadas, como se fosse suposto fazer aquilo mas a vontade não fosse muita. Num espaço que tinha tudo para ser perfeito para o som da banda, sobretudo em “Vertikal”, este ficou muito aquém do desejado, revelando-se demasiado preso e “seguro”, como se não quisessem incomodar ninguém com a sua presença. Nem as duas baterias fez alguma diferença, ao contrário do que acontece em Melvins (ou acontecera em Swans ou na jam que ocorrera há umas horas). Num alinhamento que inlcuiu “Ghost Trail”, “Vicarious Redemption” ou “Dark City, Dead Man”, as indicações deixadas pelos suecos não são animadoras, como que a mostrar que o hiato em que vão entrar não surge por acaso. Um catálogo cheio de boas músicas às vezes não chega.
O festival não acabava no entanto ali, havendo ainda dois bons concertos para ver. Primeiro, a impossibilidade de permanecer no main floor sem um sorriso no rosto perante a actuação deAlhousseini Anivolla. O músico oriundo do Níger trouxe o seu blues tuaregue ao Porto e quem se aproximou do palco para o ver saiu sem dúvida mais leve da experiência. Simplicidade e simpatia foram retribuídas com palmas a compasso e tentativas (ainda que nem sempre bem sucedidas) de cânticos por parte do público.
Sorridentes à entrada, não tanto à saída, que não é para isso que puxa o punk que os VVOVNDS trouxeram para encerrar os concertos na sala 2 (haveria ainda um dj set a cargo da organização). Quando falavam ao PA’ uns dias antes de passarem no festival, os mais novos membros da Church Of Ra diziam que tocavam “como se fossem os nossos últimos minutos de vida”. Não devia soar a surpresa vindos do colectivo de onde vêm e confirmou-se o aviso. Apesar das gritantes diferenças estilísticas – não há cá traço algum de black metal – a estética foi reminiscente daquilo que os Hexis haviam apresentado no dia anterior, com pouca luz que não fosse strobe, níveis de amplificação bem puxados e um bombardear inexorável do público com o seu violento hardcore. Estaladão final para garantir que ia tudo para casa sem energias para mais.
Chegava ao fim o festival e afinal voltava o sorriso quando olhávamos para a fonte do cansaço e reconhecíamos a tareia levada assim que os Black Shape Of Nexus subiram ao palco, que passou também pelo volume dos Conan, pelo transe da jam de VRDRBR, Jan, André Coelho e João Filipe, o concerto fantástico de Wovenhand e o extremismo de Wolvserpent. Não tinha sido possível assistir a nenhuma talk, parar nas listening sessions ou ver o filme de abertura, mas a dose praticamente ininterrupta de peso e a intensidade do mesmo eram justificação suficiente para que tivesse sido um grande dia.
O modelo de festival, desde a escolha do alinhamento, ao tempo de actuações e às condições das mesmas, pode ser completamente diferente da norma actual e por isso se compreende a negação (“não é um festival, é uma experiência”). Terminado o fim-de-semana e juntando o que se viu do segundo dia ao que vimos no primeiro, nunca sendo demais relembrar o quão irreal pareceria os YOB abrirem um festival destes há uns anos atrás, somos forçados a questionar se não é isto que um festival deve ser. Ao crescimento que resultou na melhor edição do festival até à data foi aliada a manutenção do espírito familiar do festival; só isso explica a forma de interacção entre o músicos e público durante o festival e a forma como um infortúnio familiar se tornou numa improvisação demonstrativa de paixão por aquilo que se faz entre músicos que mal se conheciam. Se os Swanselevaram no sábado a fasquia de concertos no Amplifest, também este elevou a de festivais em Portugal. Se não o fez, dificilmente algo fará.