Se necessitássemos de maior garantia, o passeio dos Ufomammut diante do Coliseu do Porto – eles que marcaram presença durante todo o festival, dada a sua ligação ao Malleus Rock Art, que tão bem decorou as paredes do Hard Club – confirmava que estávamos no lugar certo. O repleto Passos Manuel acolheu a suplementar noite do Amplifest, num serão de boas-vindas onde os Barn Owl foram anfitriões. Fez sentido: depois de uma vitoriosa primeira edição, nada melhor do que uma das bandas-rainha de 2011 fazer a ponte para a segunda. Porém, Jon Porras e Evan Caminiti garantiram que o Amplifest 2.0 não seria somente uma emulação do Outubro anterior.
Em palco, o duo de San Francisco decidiu primordialmente focar as suas atenções nos samples e no jogo de loops, deixando para segundo plano as suas inseparáveis guitarras. Mais do que a hipnotizante actuação oferecida em 2011, centrada essencialmente em acordes e dissonâncias eternas, os Barn Owl levaram ao Passos Manuel uma identidade diferente, onde o ruído foi senhor, quase na veia daquilo que um Ben Frost poderia oferecer. Cinquenta minutos de noise, onde as projecções também foram elemento-chave, deixando as inesquecíveis luzes da Sala 2 apenas na nossa memória. Um sólido cortar de fita, para um fim-de-semana que traria momentos certamente mais marcantes.
Nunca é fácil oferecer o primeiro concerto de um festival. Com um Hard Club de portas abertas para todos os que decidiram marcar presença, o Amplifest fez-se “oficialmente” iniciar com Six Organs of Admittance. Desta feita, no seu regresso a Portugal, Ben Chasny trouxe companhia e não se deixou ficar só pela voz e pela guitarra acústica: houve bateria, baixo e um Chasny claramente em modo camaleónico, pronto a alternar a sua camuflagem entre um drone crispado e jams psicadélicas, quase intermináveis. Aquilo que muitas vezes é uma virtude, a polivalência, transforma-se a espaços numa insípida incerteza e o concerto de Six Organs of Admittance acabou por sofrer um pouco com essa montanha russa de abordagens.
Os White Hills, pelo contrário, sabem ajustar a sua mira. Os espaços por onde se movimentam são definidos pelo fuzz e por um space rock capaz de transportar quem os vê para dimensões paralelas. Longe de seguirem propriamente uma receita original, o trio de Brooklyn aborda a questão de forma simples: riffs corpóreos e cheios de groove, apoiados por um baixo consistente e uma bateria que, mais do que basilar, carregou muitas vezes os White Hills às costas por algumas das colinas mais trippy de todo o Amplifest.
A história veiculada durante a apresentação de um dos temas que os germânicos tocaram conseguiria definir na plenitude aquilo que foi concebido. Assim, um homem num bar a beber uma cerveja, olha demoradamente para ela sem ter a noção do tempo a passar. Para este acontecimento se poderia expandir a actuação dos Bohren. Este homem seria qualquer um dos presentes que, suspensos pela música, perdiam o consentimento temporal. Com uma decoração de palco excepcionalmente simples, mas perfeita para a ocasião, encontravam-se envoltos na escuridão, apenas iluminados por pequenos focos de luz que os iam trazendo à claridade. Numa rara oportunidade para os acompanhar ao vivo, toda a actuação foi preenchida por uma atmosfera pouco consensual para um local em terra. Os Bohren transmitiram a sensação de que tamanha faceta musical não podia ser completamente desfrutada neste mundo, que cada tema obrigava a uma saída do lugar e a viajar num conteúdo extremamente dramático, em virtude de tudo ser tocado de forma lenta, suave e demorada.
Com o baixo gravoso, o saxofone dominante e o órgão melódico, o homem que bebe a cerveja teria a capacidade para sair do bar e, ao som dos Bohren & Der Club of Gore, caminhar com passos leves, sem um destino concreto, sem um objectivo delineado. Uma caminhada que, em virtude do que se ouvia, transmitia, como a banda, tantos pensamentos e emoções. Christoph Clöser, afirmou, numa das suas curiosas intervenções, que mesmo que não se espere nada da vida, se irá ficar desapontado com ela. Pois bem, esperava-se muito dos Bohren, não se esperaria é que conseguissem ser tão sublimes.
Os concertos dos Process of Guilt sempre foram demolidores, mas não é possível deixar escapar a afirmação de quem os viu e quem os vê. Vindos de uma tour com algumas datas pela Europa, notou-se cada vez mais uma coesão ao vivo que só a estrada pode dar. Os Process of Guilt deram um concerto compacto, que em muitos momentos se assemelhava a levar um murro de punho fechado, agravado pela entrada da voz de Hugo Santos, que consume a carne, como o faria as punhaladas de um objecto cortante. Sem dó, debitaram aquilo que actualmente é tão extenso que não pode ser enquadrado em apenas uma estirpe sonora.Doom, sludge, post-hardcore, é à escolha do freguês. Mas, tal como o mais recente disco Faemin demonstrou, já não serão rótulos suficientes para definir aquilo que fazem. Intensos, como se pedia depois da actuação de Six Organs of Admittance e White Hills, conseguiram, com momentos quase obsessivos, serem duros e pujantes, mas essencialmente directos e sem rodeios. E, isso, soube tão bem.
Para eles, não há concertos. Há rituais. Como revelado pelo vocalista Colin H. van Eeckhout, em entrevista ao Ponto Alternativo, os Amenra não gostam particularmente de tocar ao vivo. A razão não é de difícil absorção: para os belgas, o palco é local de expurgação, onde corpo e alma se submetem a um sacrifício transcrito em alguns dos melhores trabalhos de guitarra e atmosferas que o post-metal já deu a conhecer. Ao contrário de outras bandas do género, os Amenra provêm de uma escola que lhes proporcionou os seus principais atributos – o hardcore. É dessa inspiração, principalmente da corrente metálica à Integrity, que nasceu o som dos homens de Kortrijk e isso fica plenamente edificado em toda a imponência que colocam em concerto, ondevan Eeckhout nem sequer precisa de fitar a plateia para se consagrar como um dos mais altivos vultos de todo o festival.
No filme Hellraiser III, Pinhead diz que no núcleo da Terra há uma música secreta e que ela soa como lâminas a dilacerarem a carne. Se tal for verdade, provavelmente esse tema será da autoria dosAmenra e não deverá andar longe daquilo que o quinteto consegue asfixiantemente tecer em Razoreater, De Dodenakker ouAm Kreuz, temas fielmente interpretados ao vivo e catapultados por projecções que só sublinham que os belgas são também doutos na arte visual, regida pela sua própria concepção apadrinhada deChurch of Ra. Pelo meio, houve Dearborn and Buried (malha deMass V, disco ser lançado dentro de um mês), onde se pôde finalmente ouvir Eeckhout em toda a sua raiva e tormento e não tão sonoramente sufocado pela vastidão que são as guitarras deVandekerckhove e Lennart Bossu. Se há um filho pródigo daquilo que os Neurosis edificaram nos anos noventa, então os Amenra sê-lo-ão certamente e a sua muralha sonora ainda hoje perdurará nos pescoços daqueles que se balançaram ao sabor do seu excruciante concerto.
Já se perdeu a noção da quantidade de vezes que se vislumbrou os Löbo ao vivo. Apesar de terem a tarefa mais ingrata do festival – tocar depois dos Amenra – conseguiram prolongar o ambiente de culto vivido na Sala 1 do Hard Club. Por trás de todo aquele som composto notou-se em palco uma constante e cada vez mais progressiva interferência das componentes ambientais. Conseguiu-se, finalmente transportar, em toda a grandeza, estes elementos que, ao contrário do que se ouvia em disco, ficavam encobertos na massificação dos restantes instrumentos. Nesta ocasião, a presença e dimensão ambiental foi preponderante para aquilo que os portugueses conseguiram. A precisão e a progressão dos temas permanece fascinante e a espera lenta por nova dose de peso tornou-se uma experiência quase sinistra. De facto, não se pretendia harmonia e os Löbo jogaram na perfeição com os intervalos sonoros entre as camadas doomescas e mais pesadas com as menos densas. Parecia que a cada um desses momentos se aguardava por uma gravidade ainda mais forte que na circunstância anterior. A passagem de Löbo para RA acaba por não ser tão inconsciente como poderia parecer, uma vez que a progressão ambiental era construída ao longo da actuação anterior. Contudo, as estruturas electrónicas com os constantes batimentos, foram uma forma consistente de terminar a noite.