Um segundo dia porventura mais equilibrado: menos concertos, actuações mais longas, características simples que troxeram a possibilidade de cada banda dar o melhor de si. Claro que tudo esperava pelo melhor dos Godflesh, mas as cartas dadas pelosBard Pond, pelos Barn Owl e pelos Process of Guilt, só para dar alguns exemplos, seriam suficientes para encher o bucho. Mas, de qualquer forma e felizmente, há sempre o Justin Broadrick.
L’Enfance Rouge
Os L’Enfance Rouge, que Mike Patton diz ser a melhor banda da Europa, sacudiram do capote a pressão de serem a primeira banda a subir ao palco e fizeram-no da melhor forma possível: com entrega. Aliás, há já muito tempo que não via uma banda em palco a tocar com a alegria e a boa disposição deste trio franco-italiano, o que ajudou a passar o mote de alegria e diversão que se deveria manter até ao final do dia. Com eles em palco não era difícil. Os tons de Mr. Bungle e Sonic Youth ajudam a entranhar na pele a música de arrojo exótico, que nem quando uma corda se partiu deixou de soar pertinente. Houve espaço para a improvisação, para mostrar criatividade e, mesmo correndo o risco de me repetir, para mostrar uma entrega invejável. Mereceram o muito público que acorreu à sala àquela hora. AMS
Enablers
Depois de uma digressão de 41 dias sem pausas, os Enablerspisavam pela quadragésima segunda vez um palco no quadragésimo segundo dia na estrada, Europa fora. O cansaço? Todos nós procurámos por ele, mas não havia qualquer sinal de fadiga no quarteto de duas guitarras e nenhum baixo. Um baixo que era, de resto, completamente dispensável. As frequências, assim como todos os restantes elementos da sua música, estavam completamente controlados, e isso dá o espaço todo de que Pete Simonelli precisa para expandir a sua poesia por entre as paisagens sónicas que os restantes companheiros tão bem pintam. Com uma actuação mais centrada em Blown Realms and Stalled Explosions, o disco mais recente, os norte-americanos conseguiram arrancar com uma actuação cheia de energia e completamente consensual, rematando a sintonia público-banda com diversos brindes. AF
Witchburn
Quando o assunto é stoner, os Black Sabbath são, em noventa e novo por cento dos casos, a referência máxima. Com osWitchburn (dá vontade de dizer as Witchburn, ou não fosse esta banda norte-americana liderada por uma vocalista e uma guitarrista) o assunto não é diferente. Para além de aproveitaram a riffalhagem criada por Tony Iommi há quarenta anos, assumem aquela postura heavy metal, onde o whisky e o espírito motard são componentes essenciais. Apesar de bons riffs e grooves interessantes, os Witchburn não trazem nada de novo e, com osBardo Pond a arrancarem na outra sala, rapidamente a plateia abandonou os norte-americanos. EP
Bardo Pond
Em entrevista ao PA’, Michael Gibbons avisara: os Bardo Pond não vinham a Portugal para brincar. Ficou prometido que iam descarregar a Tommy Gun até à última bala, que vinham partir isto tudo e foder o que lhes aparecesse à frente. Bom, Gibbons não mentiu. Ainda não há palavras, alinhamento de chakras, sentimentos ou o que quer que seja para descrever exactamente o que se passou naquele palco.
A parede sónica montada por Michael e John Gibbons era impressionante: não parou de crescer nem um segundo e, supreendentemente, manteve-se afastada da toada mais “acessível” e quase folk captada nos discos. Aliás, no Hard Club a maior parte dos riffs saíram pesados, lentos e quentes, o que só ajudou a adensar as malhas que os norte-americanos traziam na bagagem. Com o concerto a avançar, aumentava o conforto entre o público; cada vez se iam baixando mais as guardas àquela espécie de feitiço sensual, em que o fluxo de energia, harmonia e beleza não parava de crescer. E para isso acontecer muito contribuiu não só a óbvia união entre os músicos e o instrumental psicadélico q.b., mas principalmente (dizemos nós) a beleza lânguida e drogada de Isobel Sollenberger, encarnação maior da música dos Bardo Pond. Estava estabelecida a comunhão, o uníssono sentimental entre banda e público que fez do concerto um momento impagável e irrepetível.
Foi pena que este momento épico tenha tido um fim, porque a aura “sacra” de que a banda se revestiu ao longo do concerto – com um pico máximo em Tommy Gun Angel – começava a viciar-nos e a fazer-nos crer que ia durar para sempre… AMS
Dirge
Com o momento do festival terminado recalcado na nossa mente, chegava a hora de espreitar os Dirge na Sala 2. Foi sem dúvida um dos momentos mais difíceis que já se viveu aqui no PA’: abdicar das memórias de Bardo Pond – ou deixá-las momentaneamente de parte quando deveriam estar a ser aproveitadas – para assistir a um concerto diametralmente oposto em sentimento, musicalidade e qualidade. Não que os franceses sejam uma má banda, porque não o são. O problema, além de terem actuado imediatamente depois dos Bardo Pond, é mesmo o decalque tirado a bandas como Neurosis e Cult Of Luna. Ainda assim, denotaram bastante “trabalho de casa”, já as projecções conjugaram na perfeição com a atmosfera tensa e a voz cuspida agravava o ambiente de confronto criado pelos órgãos. Mas nada de realmente novo ou particularmente apelativo se tivermos em conta que bem mais perto de nós temos bandas como os Process of Guilt… AMS
Process of Guilt
No que concerne à música portuguesa, o segundo dia doAmplifest contou com a imponente presença dos Process of Guilt. Depois de quarenta e cinco minutos de uma actuação em crescendo na principal sala do Hard Club, o quarteto deixou bem claro que merece a internacionalização mais do que ninguém. Caminhando a passos largos para uma maturidade sonora capaz de ombrear com o que de melhor se faz lá por fora, os Process of Guilt têm no seu próximo disco, o terceiro, um degrau decisivo rumo a uma maior consolidação da sua carreira, tanto em Portugal, como no exterior. E, depois de terem apresentado uma das músicas do novo disco durante o concerto, o doom dos Process Of Guilt parece estar a ganhar ainda mais peso do que daquele que já patenteou em Erosion – e, desse álbum, soube tão bem ouvir The Circle; cinco dos melhores minutos de todo o festival. EP
Barn Owl
Com os pés pregados ao chão, a criar raízes na erosão dos eborenses, foi impossível não chegar atrasado ao concerto deBarn Owl, já a dupla norte-americana atacava Lost in the Glare a toda a pompa. A música dos Barn Owl não é um drone gratuito. Por muito complicado que seja decifrar em que acto de uma peça é que Jon Porras e Evan Caminiti se encontram, esses actos existem e não são alienáveis. Irromper numa actuação de Barn Owl a meio de uma música é dar a narrativa por perdida e esse terá sido o erro de muito boa gente que padece de impaciência crónica. Não tardou, contudo, até que os dois guitarristas atacassem a bela Shadowland, homónima do EP que lançaram este ano, com uma aura quase oriental, definitivamente transcendente e superior às ideias de música de estrutura fácil. As cadeiras do Hard Club todas preenchidas, gente sentada em todo o chão livre e uma entrada completamente tomada pelos que não arranjaram coragem para apoiar as nalgas num pedaço de qualquer coisa que para isso sirva mostravam isso mesmo: uma audiência rendida à magia única dos Barn Owl. Como o havíamos de evitar? AF
Acid Mother’s Temple
Os Acid Mother’s Temple são um caso raro da música. Não só em termos de longevidade, nem de criatividade, mas antes em termos de “propriedade da banda”. No domingo foram só quatro japoneses, mas podiam ter sido cinco ou seis. E podiam ter sido outros quatro. Os Acid Mother’s Temple, mais que uma banda, são uma entidade que traz bem patentes e incorporados os valores máximos do psicadelismo. Há uma postura flower power, há uma imagética xamânica, há solos prolongados e intrincados, um baixo estonteante e um ritmo desenfreado e contagiante. Foi bom ter visto sair daqueles quatro japoneses que canalizam energia como ninguém, poder e vontade de tocar que conseguiu pôr até o mais empedernido dos homens a mexer o corpo. Uma vénia. AMS
Orthodox
À medida que decorria o pingue-pongue imparável entre as duas salas, iam-se contando os minutos que faltavam para que osGodflesh subissem ao palco e isso notava-se: não só na expectativa palpável, mas também na audiência reduzida que acorreu à Sala 2 para ver os Orthodox. Pois bem, quem preferiu marcar lugar à espera de Justin K. Broadrick perdeu um dos concertos mais pesados e ensurdecedores do festival.
A versatilidade dos espanhóis é conhecida e tem-se mostrado com cada vez mais força nos discos, mas no Amplifest a banda mostrou-se como se deu a conhecer ao mundo, a cheirar a enxofre. Marco Serrato e companhia não pouparam ninguém, não perderam tempo com a calmaria de Sentencia e preferiram caminhar entre Amenecer en Puerta Oscura e Baal – que prazer que foi bradar ao grande Bode com Hani’baal – e o resultado foi bastante satisfatório. Ainda que aqui e ali as colunas da Sala 2 tenham parecido incapazes de suportar com tanto peso, distorção e vontade de arrastar tudo e todos para o Inferno, os Orthodoxfizeram por valer a ansiedade cada vez mais crescente de pôr os olhos nos Godflesh. O tinnitus ainda hoje se faz ouvir…
Godflesh
O risco de cair num insípido anacronismo é elevado, quando, em 2011, se escreve sobre o concerto de uma banda reactivada dez anos depois de cessar actividades e duas décadas após ter lançado as suas magnum opus. Ou melhor: seria elevado, caso a banda em questão não fosse Godflesh.
Como Scott Kelly, membro dos Neurosis, certo dia afirmou, o maior feito de um criativo é alcançado quando a sua arte subjuga a imparável e temível maré do tempo. É quando ela se desprende da mais asfixiante corrente de todas. É quando ela obtém a imortalidade. No panteão daqueles que conseguiram essa recompensa, a maior de todas, figura Justin Broadrick, a mastermind que alimenta o férreo esqueleto de Godflesh.
Não é difícil perceber o porquê. Ouvir Like Rats, faixa de abertura do incontornável Streetcleaner, a eclodir de rompante numa expectante Sala 1 do Hard Club faz tanto sentido neste final de Outubro como faria numa obscura cave de Birmingham, em 1989. Godflesh fez-se nascer a partir da desilusão, da opressão, da sujidade e da corrupção que tendem a proliferar na sociedade ocidental e essas características perpetuam-se irremediavelmente. Combatendo-as, o som de Godflesh também.
É por isso que ver Justin Broadrick a gritar “Screw you and your world”, com as veias do pescoço salientes, numa amaldiçoadaAvalanche Master Song é algo actual. O público portuense sabe-o e corresponde ao inigualável groove de G.C. Green no baixo e às pancadas certeiras de uma singular drum machine com acentuados movimentos corporais. Alinhados pelo mesmo comprimento de onda, fãs e banda deixaram fluir tudo aquilo que tinham guardado dentro de si há tempo demais – afinal, esta foi a primeira vez que os Godflesh visitaram Portugal. Por entre várias faixas de Streetcleaner, ouviu-se uma tríade retirada de Pure: Spite, Mothra e a música homónima do álbum lançado em 1992 colocaram o Hard Club a suar como até então não se tinha visto no Amplifest. Quando Justin e G.C. pousaram a guitarra e o baixo, dirigindo-se para o backstage, foi fácil perceber que ainda haveria mais, já que o Mac permaneceu ligado.
Assim foi. A veemente Crush Your Soul devorou o que restava da energia concentrada na Sala 1 e Slateman conduziu todos os presentes para um hipnótico final. Já com G.C. Green fora do palco e com a drum machine silenciada, Justin Broadrick recordou-nos o porquê de ali termos estado para testemunhar Godflesh e não só. Resumindo o Amplifest, explicando um estilo de música e justificando todo um estilo de vida, o britânico enfrentou o seu amplificador durante vários minutos, num diálogo onde a distorção serviu como expressão máxima. Uma distorção que teima em mostrar que há muito, muito mais para lá do simples ruído – o que é, ao certo, é de impossível transcrição: as melhores sensações desta vida não têm tradução vocabular. EP
Vê mais fotos do segundo dia do Amplifest AQUI.