O Amplifest. O que dizer sobre um festival que correspondeu a todas as expectativas além de que não podia ter sido melhor? Propuseram-nos Godflesh, Jesu, Acid Mothers TempleEnablers, Bardo Pond e mais uma considerável dezena de nomes e nenhum se atrasou, nenhum ficou por comparecer e, melhor, nenhum logrou as esperanças de um evento de música como arte a partilhar. Enquanto JK Broadrick andava a passear-se pelo Hard Club, andávamos nós a cruzar-nos com a sua presença carnal-divina a trocar entre a Sala 1 e a Sala 2 para sermos ora sovados por Rorcal, ou acariciados por Barn Owl. Em retrospectiva, tudo foi assim:

EAK

Coube aos EAK inaugurarem o Amplifest – e fica bem que uma banda portuguesa o faça, ainda para mais sendo do norte do país e actuando na Sala 1. Mesmo com pouca gente diante de si, osEAK debitaram o seu musclecore, termo recorrentemente usado para descrever o som metalcorizado da banda e que intitula o seu disco de 2006. Agora, cinco anos depois, os EAK já andam comMuzEAK na sua bagagem e fizeram questão de demonstrá-lo durante os quarenta minutos de uma actuação que cumpriu os objectivos a que se propôs.  EP

Suzuki Junzo

A música de Suzuki Junzo é tal e qual a visão do amor de Sofia Ford Coppola: um lugar estranho. Estranho e etéreo, em que tudo corre a mil no tempo e no espaço, mas sempre assente na mesma distorção que teima em tirar tudo do nosso alcance. Depois da demolição auditiva oferecida pelos EAK, Junzo criava na Sala 2 do Hard Club um dos momentos mais introspectivos e reflexivos do festival. Foi um momento perto do sublime, tecido em drone que reflecte na perfeição toda a ideia que temos do Oriente: um lugar estranho. AMS

Cuzo

Durante o concerto dos Cuzo, estava a ser projectado o filme do festival. Nenhum documentário resume melhor o que caracterizava o espírito Amplifest, tão evidente ao longo dos corredores do Hard Club, do que Blood, Sweat & Vinyl, um documentário centrado nos espírito DIY e de partilha das editoras Hydra Head, Neurot e Constellation. Aliás, nada do que passou naquele filme estaria a mais no Amplifest e, enquanto Aaron Turner dos ISIS, Steve Von Till dos Neurosis e Efrim Menuck dos Silver Mt. Zion discorriam sobre o que era importante na música que faziam e ajudam a editar, o factor artístico, o progressivo-psicadélico dos catalães fugia-nos, até que ficaram apenas os Sungrazer. AF

Sungrazer

Da Holanda veio, provavelmente, a banda do cartaz cujo estilo se assemelha mais àquele stoner desértico que os Kyuss fizeram florescer no início dos anos 90. Com um groove cativante e capaz de atirar as mentes dos que estavam pela sala principal do Hard Club para as infindáveis dunas do Desert Valley, os Sungrazerarrancaram uma das melhores prestações do primeiro dia doAmplifest. Os riffs carregados de fuzz e os solos psicadelicamente saborosos fizeram de músicas como Zero, Zero ou If hinos de um escape mental que só terminou quando os simpáticos holandeses descansaram a sua Fender e o seu Rickenbacker. EP

Stearica

Não são post-rock, não são rock, mas podem, e devem, ser resumidos pelo que realmente são: Stearica, um trio típico do rock ‘n’roll, só com a essência do género como instrumentalia, partiram para um planeta distante, à velocidade da luz e embalados pelo groove da secção rítmica. Os anos luz percorridos não foram, infelizmente, tantos quanto os inicialmente propostos. À custa de uma corda partida, o baterista dos italianos viu-se forçado a montar um espectáculo de stand-up e a pedir conselhos sobre o que, das nossas iguarias, comer – houve até tempo para uma mal-entendido entre fusilli e cozido que valeu uns insultos dignos da máfia napolitana. Reparados os danos, a banda de Turim (terra da FIAT, como explicou o baterista) retomou o seu rock ultra-psicadélico instrumental com tanto de Acid Mothers Temple quanto a colaboração entre as duas bandas deixa, desde logo, perceber. AF

Rorcal & Solar Flare

Num evento como este, há sempre uma saudável competição pelo “prémio” de melhor revelação do cartaz. Os suíços Rorcal (que contam com dois portugueses na sua formação) se não foram os vencedores dessa medalha, estiveram lá perto. Consigo, trouxeram Solar Flare, baixista que colocou, após alguns minutos a solo, o espaço número um do Hard Club com o ambiente adequado para o que se seguiu. E o que seguiu foi uma das mais virulentas descargas de todo o festival. Se os Celeste ou os Thou são recorrentemente usados como exemplo-mor para aquele sludge/doom vindo das mais profundas vísceras, os Rorcal têm de urgentemente começar a ser incluídos nessa lista.

Durante três quartos de hora, os suíços vaguearam por uma penumbra hipnotizante, proporcionada por parcas luzes vermelhas, às quais se juntavam, de vez a vez, umas strobe lights intermitentes, que tornavam o ambiente na Sala 1 verdadeiramente soturno e asfixiante. Dos riffs monoliticamente distorcidos, aos berros estridentes e inquietantes de um vocalista entregue a uma dimensão paralela, os Rorcal espatifaram por completo os que tiveram coragem para enfrentar a lenta mas grotesca muralha sonora de uns helvéticos que merecem e têm de ter mais destaque na cena internacional. EP

Mugstar

Depois do caos psíquico provocado pelos Rorcal, foi difícil captar o que os Mugstar estavam a apresentar na Sala 2. Ainda para mais, quando estes britânicos se dedicam, lá está, a mexer com a psique de quem os vê, através de um space rock abrasivo, com uma componente visual bem forte, construída com projecções múltiplas e luzes garridas. Colocados noutra posição no cartaz e o resultado poderia ser positivo; mas, depois de Rorcal, os Mugstar acabaram por sair prejudicados. EP

Rise and Fall

Mesmo num cartaz que se esforçou para abranger vários estilos, os Rise and Fall foram, talvez, a banda mais deslocada do evento. Com um hardcore quem tem raízes naquilo que os His Hero Is Gone ou os Cursed fizeram há uns bons atrás, os belgas deram um concerto mais rápido e trepidante do que a maioria das bandas que passaram pelo Hard Club, o que não é um ponto favorável, tendo em conta que a vagarosa abordagem rítmica tende a dominar um cartaz deste género. Ainda assim, conseguiram reunir uma boa porção de gente diante de si, à qual, através de faixas como The Noose ou Forked Tongues, deram uma valente sova.

Tendo noção de que não “jogavam em casa”, os Rise and Fall não quiseram, contudo, diminuir os níveis de intensidade pelos quais são conhecidos na cena mundial de hardcore e Björn Dossche, vocalista, serpenteou-se pelo palco, numa performance agressiva e que terminou com uma extenuante In Circles. EP

OvO

Entrar na Sala 2 e não ficar minimamente embasbacado com osOvO é impossível. O caos, o ruído, a esquizofrenia era tanto que, na nossa cabeça, parecia inconcebível tudo aquilo ser criado por apenas duas pessoas: Bruno Dorella, um possante “luchador” que violentava insistentemente uma tarola, um bombo e um prato; e Stefania Pedretti, de guitarra e baixo em punho e uma espécie de máscara de Veneza na cara. Curiosamente, talvez por ser a primeira mulher a subir ao palco no primeiro dia, havia algo de sensual em Stefania – também pode ter sido do cinto de ligas – o que ajudou a aumentar a bizarria em torno do duo italiano. Bizarria não só visual, mas também musical. A bateria tribal é o ponto de partida para que caia sobre o público uma espécie de hipnotismo, que é quebrado ruidosamente pela guitarra (ou baixo) raivosa e no limiar da vertigem no instante a seguir. Do noise ao doom, sempre com um índice lo-fi e DIY muito alto, os italianos foram responsáveis pelo concerto mais desconcertante do primeiro dia – bom, isto se não contarmos com Drumcorps. Mas essa é outra história.

Jesu

O início de Jesu foi quase catastrófico e imensamente pouco convincente. Torceram-se narizes, e vacilaram vontades de ver o senhor e único JKB em palco com o seu espírito perturbado e igualmente pesado, mas definitivamente mais depressivo. A depressão começou a avizinhar-se do público não pelo lado esperado, mas pelo que parecia estar a correr mal. E se, depois da primeira tentativa mais post-rock de Hard to Reach, nem a segundaBirth Day do mais recente Ascension resolveu os problemas de consciência de ninguém, foi preciso a chegada de Conqueror para levar tudo a bom porto. Com a confiança de quem sabe fazer um riff, e com um riff de quem inspira confiança, Justin arrebatou tudo e todos em definitivo até ao final do concerto. Foi preciso um concerto para perceber porque é que o Conqueror é O disco deJesu – e a razão é mais simples do que se possa pensar: é o seu disco mais imediato, mais cheio de guitarras e menos dependente das batidas e sons sintetizados do computador.

Como seria de esperar, enquanto a dupla que compunha Jesu (se não contarmos com o musculado computador de JKB, com mais força do que muitos bateristas de doom experimentados e com rotina de ginásio) percorria uma discografia considerável os cabeceamentos sucediam-se concerto dentro. Obviamente, ajudou à festa o cada vez menos suave peso, de proporções industriais e vindo directamente do passado do mentor da banda, que aqui e ali já deixava antever que “amanhã é que vai ser”. A óstia de Jesuestava entregue e o corpo da banda tinha sido partilhado e comungado entre todos os presentes, entregue pela simpatia, sim, pela simpatia, de Broadrick. AF

Drumcorps

Depois de Jesu nos abalar um pouco o espírito, chegou a vez deDrumcorps nos abanar os corpos – pelo menos aos que conseguiam acompanhar o seu ritmo infernal de 300 batidas por minuto, em média, e de variações de andamento entre mega-rápido e supersónico, sempre com os maiores ruídos a insurgirem-se no meio de toda aquela confusão sonora e claramente dopada. Mesmo de guitarra em riste, o seu ritmo era impossível de acompanhar, mas isso não impediu que se esboçassem movimentos aqui e ali, numa Sala 2 relativamente mais despedida do que esteve durante os demais concertos, ao ritmo do que não parava de acontecer. De qualquer forma, o que quer que tenha ali acontecido deixou sobreviventes, visto que o próprio norte-americano foi experimentar um pouco dos sons do Amplifest durante o dia que se seguiu. Estava estranhamente calmo, sempre. AF