Raios lunares iluminam as arestas da Vasco da Gama, o rio ao longe, pequenos grupos de pessoas à volta de garrafas baratas, outros tantos movimentam-se de encontro àquela estrada. Um deles, evidência um vulto cuja imagem não engana, mesmo a metros de distância. Allen Halloween, em simbiose com uma garrafa de aspecto vintage, aproxima-se com a sua comitiva:Lucyfer, Butts Mc e DJ Nel’Assassin. Um mimo. Além do rapper, temos também talvez o melhor DJ português. Scratch!
Eram 23H, apenas um marco vago para o início. Quando subimos ou descemos as escadas do Clube Ferroviário, e se forma um comboio de várias carruagens, sabemos que Allen lá estará, sendo interpelado para selfies, entrevistas, conversas fugazes de fã, cumprimentos anónimos. De óculos escuros, camisa aos quadrados e gorro, no terraço, é igualmente o inequívoco centro das atenções ao redor de uma numerosa mesa, à qual efusivamente se juntam Psydin Atómico e General D, num bamboleio de conversas, pratos e copos fartos, mas apenas uma lua. Que, no local em questão, não é o mesmo astro que reluz no céu azul e nos tinge as vestes.
Há happy hour no Ferroviário, a cerveja é 2€. É preciso quase gritar um insulto para obter uma, mas eu dou-me ao trabalho. A temperatura era amena, como a luz baixa e avermelhada vinda dos abajures. Conseguimos ouvir o tom alto das conversas e das gargalhadas na mesa de Allen, o rio reflete a lua cheia lá bem ao fundo, as nuvens de haxixe multiplicam-se, inventando caricatamente caretas ao passarem nas narinas de quem bebe vinhos caros. Uma boa noite. Longa foi a dos que, à hora em que entravamos, no andar de baixo, já se encontravam numa densa camada à boca do palco, sedentos do seu lugar e do homem da noite. Inimaginável imagem, se recuarmos o pensamento ao ano de 2006, quando saiu “Projecto Mary Witch”. Allen Halloween é hoje, com o seu terceiro álbum “Híbrido”, segundo lugar de vendas na FNAC, e apresenta-o numa movimentada noite lisboeta com contornos de rockstar.
Não muito passava da uma da manhã quando Rui Miguel Abreu, responsável pela música até então, sob a jurisdição Rimas & Batidas, saiu do palco, dando lugar a Nel’Assassin, que ainda passou alguns sons, antes que Lucyfer entrasse. Alguma ansiedade quando este anuncia que irá apresentar duas músicas do seu futuro álbum – quer-se Allen Halloween, é mais que palpável. Retumbante ovação quando surge: gritos, gritinhos, urros, após ecoarem os primórdios de “Mr.Bullying”. O rapper pareceu nervoso à primeira, quiçá devido à recepção adocicada, e de, como é normal, tratar-se de uma primeira apresentação (em Lisboa…), com esquecimentos na letra que a plateia completou como um teste de preencher espaços com nota cem.
O rumor de “Fantas” instiga-nos de imediato o pescoço apicaretear o ar. “Mary Bu” e “Raportagem” trazem-nos um saudosismo que não chega a sê-lo, quando pelo meio vem “Rap De Rua”. “Marmita Boy” em jeito de balada, com isqueiros ao ar e vozes sentidas, porque somos um deles… O mesmo acontece com “Zé Maluco”. “Killa Me” demorou a entrar, o sample parecia encravado no disco, mas quando entrou, foi destrutiva. Que interpretação!, é aterrador. E “Drunfos” que, por sua vez, demonstrou também ser um verdadeiro e improvável hit. Tudo isto, com o flow único que o scratch dá ao rap, – infelizmente hoje em desuso, mas seu por definição, como os solos para o rock’n’roll. Ainda para mais a cargo do «rei» Assassin, como apresentouAllen inicialmente.
Tom jocoso reservado à expressão «hip-hop tuga», usada para introduzir General D ao palco, referindo ser o único rapper do movimento com quem tinha o sonho de partilhar uma faixa. E o contentamento materializou-se com mais uma inqualificável interpretação em “Bairro Black”. É demais. Não há em parte alguma um rapper como Allen Halloween. De seguida, pede espaço, coloca o mic no suporte, rodeado dos seus tropas, luz baixa – «mano, baixa a essa luz, ‘tá-me a matar, eu não curto luz», como num ritual, interpreta “Bandido Velho”. A batida seca de “Fly Nigga” entra depois, lembranças de Kurt Cobain nos berros finais. No fim, Allen diz-nos «caguem em tudo o que voz dizem, não se esqueçam de ser boas pessoas». “Youth”, a música rainha deste “Híbrido”, terminou, e nem fazia sentido ser de outra forma: foi simbiose, união, vidas diferentes, mas iguais, em disputa por migalhas, por isso…