Allen Pires Sanhá, um colosso sorridente na nossa direcção. Em frente ao metro de Odivelas, cumprimenta-nos e indica-nos uma esplanada junto à estação – «eu vou pagar», diz a caminho. Falamos da actualidade enquanto não surgem os pedidos, o sinal acordado para iniciarmos. Numa gargalhada, conta-nos que «já nem nas esplanadas do Martim Moniz» os portugueses têm dinheiro para gastar. «Diz-se que a Isabel dos Santos é dona disto» – aponta para o condomínio fechado, que avistamos da mesa. Chega o empregado: um Martini daquele lado, duas cervejas deste.

Allen Halloween é terreno fértil ao culto. Mitos, boatos, opiniões várias, fazem parte da embalagem. Já o julgaram morto e ele não se preocupou muito em desmenti-lo. Atitude ilustrativa para tudo o resto. O rapper não quer, mesmo, saber da forma como as pessoas o veem, tendo, todavia, noção da sua transversalidade na música. Não quer ser professor de ninguém, não se sente na obrigação de explicar o que seja. «A arte não deve ser básica», repetiu-nos. E o culto agiganta-se. Talvez seja esse o seu maior trunfo, ainda que não pareça esforçar-se por isso.

Tentámos deslindar os três: o homem, o rapper e o culto. Com mais de uma hora de muitas perguntas, prontificadas respostas e bom humor. No fim, vestiu o blazer por cima da camisa, despediu-se e nós, vendo-o partir em passo largo, recordamo-nos instantaneamente do refrão de “Drunfos”.

Sabemos que cada álbum representa uma fase da tua vida. A questão é: com quanto tempo de atraso?

Poderia dizer que um álbum são as minhas doze melhores músicas, homogéneas, que eu fiz entre um disco e outro. Mas também existem músicas neste álbum que tenho há muito tempo. Com o passar dos anos, melhoras na produção. E mesmo em termos de letra. O que eu faço é reconstruir algumas músicas. Neste álbum, há faixas que eu gravei nos últimos dois meses; enquanto outras, embora não estejam gravadas, estão escritas desde 2005, 2006. Partes delas existem ainda antes do “Mary Witch”. São aquelas ideias que ficam na cabeça.

Conseguirias ligar uma etapa da tua vida a cada disco?

Posso dizer que o “Mary Witch” é um álbum que reflecte a oitenta por cento a minha vida no gueto. Morei num, lá em cima, perto de Santo António, mas saí em 2000. Fui para um prédio ao lado da Azinhaga do Barruncho. Descia e ‘tava a toda a hora no gueto. Mas eu não posso delinear bem essas etapas… No sentido em que eu não faço um álbum a falar só de onde eu vivo. Eu faço um álbum a falar daquilo que eu sou. Porque eu posso morar no inferno e não ser o diabo. A cena do gueto às vezes é um bocado cliché, as pessoas dentro dele não são assim tão estranhas como se pensa, apenas têm pouco dinheiro. Tu no gueto podes falar sobre o teu amor com miúdas, a relação com a tua mãe, com os teus irmãos, cenas normais… Se calhar, ‘tás muito mais à vontade no gueto do Barruncho do que no Cais do Sodré. Podes apanhar uma tala e dormir à porta de alguém. Qualquer vizinho teu pega em ti e leva-te para casa. Isso no Cais do Sodré? Já foste, mano. [risos] Mas, sim, posso dizer: o “Mary Witch” foi no tempo em que vivi mais no subúrbio. Depois, saí da casa da minha mãe, juntei-me com uma chavala e fui morar para a Lisa. Normal. O “Árvore Kriminal” mostra esse período em que eu vivi em Lisboa – a noite, o Bairro Alto, o Adamastor. Aquela onda ali. Quando o meu primeiro puto estava para nascer, percebi que não o iria criar ali na rua cor-de-rosa. [risos] Viemos embora também por algumas confusões. O “Híbrido” é um regresso a Odivelas.

O álbum parece-nos um regresso também às origens. Mesmo no que ao formato diz respeito – mais artesanal, à semelhança do “Projecto Mary Witch”.

Foi masterizado por mim e tudo. Nos outros, eu gravei, fiz mistura por alto – só para ter a noção de como eu queria o álbum – e entreguei a alguém para masterizar. Este aqui, eu não posso dizer «esta voz ‘tá mais alta». Se ela está mais alta nalguma parte, põe-se mais baixa. Foi tudo feito ao pormenor. Quando és tu a masterizar, é diferente. Antigamente não tinha conhecimento suficiente para masterizar um álbum, hoje já tenho. Foi tudo feito aqui por mim, aqui em Odivelas.

Neste disco, existe uma aura de redempção bastante forte, mais vincada do que a existente no “Árvore Kriminal”. Logo a iniciar o álbum, evocas precisamente uma perspectiva de quem já se encontra do lado de fora do crime.

Posso dizer que ‘tá baseado em mim. É, mais ou menos, uma reflexão sobre o que me poderia ter acontecido, ‘tás a ver? Há colegas meus que não tiveram a sorte que eu tive, e andávamos na mesma vida. Por sorte, por Deus e, se calhar, também, pela minha inteligência. Não aconteceu. Há sons neste álbum que não são totalmente o eu, são personagens que têm um bocado de mim, ou têm muito de mim, e têm da pessoa que eu quero retratar. Tipo “Zé Maluco” – tem muito de mim, mas não é completamente sobre mim. Eu já tenho mulher. [risos] Mas já me senti daquela forma. Eu não gosto muito da palavra personagem, porque é uma coisa criada, é ficção. E eu não posso chamar isto de ficção, pois são partes da minha vida. Por exemplo, por ter tido a sorte de nãocomer saco, posso fazer um “Bandido Velho”. Poderia ter tido azar. E provavelmente hoje nem estava a fazer rap.

É mais difícil estar lá dentro ou estar cá fora?

É mais difícil estar lá dentro. Estou cá fora a falar. Já passaste essa fase, já sabes a causa e efeito – «se fizer isto, vai-me bater mais tarde aquilo». Naquele tempo, não há essa percepção. Podes fazer o que te apetece que ninguém te vai chatear mais tarde. Tenho vários colegas que foram presos e, depois de estarem lá dentro – aquilo a que a gente chama de pombo –, começaram a surgir vários processos antigos. Então, a tua cana vai aumentando, aumentando. São essas pequenas coisas que um gajo sabe hoje, que evita, claro. É melhor estar a relatar de fora do que estar lá dentro. Mas, como eu disse, a vida de qualquer homem é lutar contra a sua carne. Nós não pedimos para estar lá dentro. Às vezes a situação descontrola-se e já ‘tás lá. O mais difícil és tu, mano. Mudar-te a ti. Mudar os outros. Depende do teu amor pelos outros.

A “Mr. Bullying”, que publicaste no Youtube poucos dias depois daquele episódio com os miúdos na Figueira da Foz, é um desses casos em que criaste uma personagem?

Estava já gravada e eu, olha, «agora tá a acontecer isto, põe aí o som a rodar». Na escola, tive vários colegas que passaram bué mal. Eu não posso dizer que passei mal. Tinha sempre a turma, o irmão mais velho… “Mr. Bullying” é aquilo que eu acho que esses meus colegas pensavam. E, de certa forma, na escola, uns passam por bullying, outros passam mal por levar a mesma camisa o ano todo. Eu apanhei isso há muito. Se calhar, demorei algum tempo para descobrir. Por não ter dinheiro, havia formas de fazer com que as pessoas me respeitassem. Uma delas era a violência. Se ele for otário, a turma goza o ano todo. Mas se ele começar a dar nos cornos, o pessoal pensa duas vezes. Não levem a mal. [risos]

A propósito, a tua discografia tem nessa temática uma abordagem recorrente: a dor e a ira numa relação íntima, associada à vivência nos subúrbios.

Não. Associo à vida, mano. Há muitos putos que tu vês com uma boa casa, um bom curso, mas eles estão cheios de dor. Olha aquele que mandou o avião com 200 e tal pessoas lá dentro. Porque é que ele tinha dor dentro dele? Conheço tantos cujos pais os enfiaram a tirar aquele curso, a trabalhar naquela empresa de que não gostam. E mulheres também. ‘Tão casadas com o gajo de que não gostam, têm uma vida que não gostam. Essas pessoas vão acumulando a dor e, se calhar, qualquer dia explodem. Há muitas formas de elas exprimirem a sua dor através da ira. Como aqueles donos de empresas, que maltratam as pessoas. São frustrados. Não é normal uma pessoa tratar mal tanta gente. As vidas deles são aquelas oito horas. Enquanto a maioria das pessoas ‘tá à espera de que as oito horas acabem para ir ter com família. Nós, graças a Deus, temos o rap para explodir e, quando não cabe tudo no rap, explodimos mesmo na vida real.

Outro tema recorrente na tua discografia é a violência. Em várias formas: policial, entre gangs, nacionalismo extremado, segregação…

Os meus inimigos mais perigosos não são propriamente skinheads. Os meus inimigos mais perigosos são pretos como eu. [risos] Qualquer black de Lisboa deve dizer isso. Dá vontade de rir, mas é verdade. E os polícias a mesma coisa: matam-se uns aos outros e matam-se a si próprios – têm uma taxa de suicídio bué grande. A violência é uma coisa que eu conheço bem. Tenho amigos que até assassinos se tornaram. Eu vejo aí bué putos que dizem que gostam de violência… A violência é daqueles amigos que anda contigo e, no final do dia, não podes deixá-lo à porta de casa. Vai contigo para todo o lado. A tua mãe tem medo de ti, a tua mulher tem medo de ti, depois o teu filho quer imitar-te… Então, a violência não é uma cena assim muito fixe. Mas às vezes acabas por utilizá-la. Ainda para mais no caso de pessoas que vivem num mundo verdadeiramente violento. Posso dizer-te que, sem a minha violência, certas pessoas não me respeitariam até hoje.

«Hip-Hop Saved My Life». Sentes isso?

Claro, mano. Se eu não tivesse o rap para mandar as coisas cá para fora, mandaria por outro tipo de canais… Poderia ter destruído a minha vida. Mas, quando digo isso, não sei se a minha vida até hoje está salva. Tal como a vida de qualquer um. Mas o hip-hop salvou a minha vida e a de muita gente. Nem que seja por fazer aquele dinheiro mínimo, que já dá para que nos desviemos de muitos caminhos. Com vinte e tal anos, já não precisava de andar a fazer certos negócios, porque o rap já me dava dinheiro para aquilo que eu queria. Até porque não sou pessoa de querer muito. A vaidade lixa muita gente. Os meus pequenos vícios e vaidades o rap, com certa idade, já pagava. Nesse sentido, sim, salvou. Por eu ter conseguido gravar os meus álbuns e ter reconhecimento, posso dizer que salvou a minha vida. Porque quando essas coisas te acontecem, a tua raiva e o teu ódio diminuem. Mas salvou até agora. Tu não tens um controlo total sobre a tua vida, pode descambar a qualquer momento.

Achas que és mal-entendido enquanto músico? Consideram-te um ícone underground mas, em grande parte, associam-te apenas ao espectro do crime.

Eu, de certa forma, até fico contente por isso, mano. Não pela opinião em si, mas é do tipo… Quando a opinião geral sobre uma pessoa é má, ou é cliché, é porque essa pessoa tem algo. Só para te dar aqui uns exemplos rápidos: o Tupac para a maioria era um bandido; o Bob Marley era um gajo que fumava ganzas, ‘né?; oKurt Cobain era só um drogado; a Amy Winehouse uma bêbeda… É nesse sentido que eu me sinto satisfeito. [risos] Porque eu também sempre me esforcei para fazer música que não é para toda a gente. E não é para toda a gente perceber logo à primeira. Se alguém gosta, a partir daí começa a perceber. A arte não deve ser básica. Um exemplo: se eu sou um maquinista, não vou começar o som a dizer «eu sou o maquinista, trabalho na CP». Um gajo brinca com as palavras. Ao ponto de, no fim, eu mandar um certa frase e a pessoa ficar «será mesmo que ele estava a falar de um maquinista?».

Não fazes música para toda a gente, isso é perceptível. Contudo, em Portugal provavelmente és dos rappers mais transversais. Tenho amigos que adoravam ver-te num festival de punk…

Isso é normal. Desde que eu comecei a fazer música, há coisas que eu percebi logo. O rap é apenas um canal para me exprimir. O rap é só uma forma de eu falar do mundo. Não falo das calças largas, não falo do scratch, não falo do DJ. Falo da vida. Vou a um concerto, e não ‘tá lá bem o pessoal do hip-hop, até ‘tão lá gajos do metal… A minha base para criar é a vida, o rap é um instrumento. Claro que é o meu estilo musical. Mas não me prendo nessas coisas, que eu considero fúteis – o beat, a tarola, o DJ… Ou seja, eu falo de coisas que as pessoas sentem, falo do amor, ódio, inveja… Quando tu fazes música assim, é normal tocar toda a gente. Qualquer pessoa sente. E não falo da cultura hip-hop em si. Eu não me acho uma pessoa que faça parte da cultura hip-hop.

Dizias há pouco tempo noutra entrevista, com alguma ironia, que as pessoas acenam, dizem que gostam da tua cena mas que, no fundo, não percebem nada do que dizes. Isso tem que ver com a distância de realidade entre os interlocutores?

Eu falo no sentido do grande público… Mas, sim, tem que ver um bocado com a distância de realidades… E eu acho que às vezes também existe falta de cultura musical. Por exemplo, há pessoas que se te veem sempre com a mesma roupa, acham que não tens dinheiro para comprar outra. E eu até tenho patrocínio de uma marca. Nunca lhes passa pela cabeça que um gajo não liga a roupa. Se ando de metro, não é por não ter dinheiro para comprar um carro. Ouvem o “Dia De Um Dread De 16 Anos” e pensam «Ah, o gajo anda a roubar velhas». [risos] Aqui em Portugal há bué disso, o pessoal não apanha as cenas. Se calhar, até me fica mal dizer isto, mas… Parem de ouvir músicas básicas, oiçam música com um bocado de conteúdo. Mas eu não me sinto na obrigação de explicar às pessoas. As pessoas se não apanharem hoje, apanham com o tempo. Se não apanharem com o tempo, azar. [risos]

Vemos-te sempre à margem dos grandes acontecimentos, específicos do estilo ou de outros a que o rap começa a chegar em força. No entanto, temos a sensação que possivelmente já terás recebido convites.

Claro. [risos] Há muita gente na música a ser paga com vaidade. Apanhas alguém que conhece os media. Mete-te aqui, mete-te ali. Ele vai fazendo a sua vida. E a ti paga-te com isso, com vaidade. Nós já não estamos nessa. No que diz respeito à nossa música, têm de nos pagar aquilo que a gente merece. Não vou em conversas do tipo «ah, vem aqui tocar neste festival, vai ser bom para ti». Bom para mim é dinheiro no meu bolso. [risos] Há muito pessoal no rap que quase paga para tocar. Pagam o espaço,manager, técnicos de som… Se reparares, um gajo nem managertem. Porque não preciso. Tenho um Hotmail – as pessoas contactam-me, vou dando concertos, vão-me dando a minha guita e eu vou pagando aos tropas que tocam comigo. Sinto-me bem como estou, com a guita que ganho. Eu vou a uma terrinha aí cantar, canto o “Mary Witch” e o pessoal conhece-o de cor. Acho que isso também é o pagamento de fazer música assim.

Também a forma como lanças as tua músicas, publicando-as quase todas no Youtube antes de o álbum sair, é algo que não estamos habituados a ver.

Tem que ver com a cena de não estares a guardar música. Pá, se calhar não é bom tu guardares doze músicas para lançares passados dois anos. É bom que as pessoas vão vendo a tua evolução. É nesse sentido que eu vou lançando. E, também, para ser sincero, canso-me de ter uma música lá no PC, sem que ninguém a ouça. Então ponho-a a girar. E não perco dinheiro. Dinheiro fazes em concertos.

Porque é que acabaste por deixar cair sons como “Rapazes do Campo” ou “Casa do Mickey”?

Quando cheguei ao final do álbum, deixei-as de fora. A minha raiz é o rap, querendo ou não. A “Rapazes do Campo”, em particular, estava a desviar-se um bocado da minha linha. Quando acabas o disco, é que tens noção disso. Tens sempre de cortar alguma coisa. Quando és muito experimental, corres o risco de perder a tua linha. Aconteceu o mesmo com o “Badalhocas”, que puxava um pouco para o trap. Estava a divagar muito, na minha opinião. O “Adeus Dog” foi mais por ser um som que fala da morte. E eu considero que tenho um Deus alegre, então retirei-a também.

Antes de terminarmos: afinal, este é, ou não, o teu último álbum? Esclarece-nos isso.

Eu falei essa cena por alto… É algo pessoal, que eu não quero que seja um tema. Porque é algo que eu nem decidi ainda. Sei lá, oHalloween pode acabar e o Allen Pires continuar… Essa coisa não deveria ter sido publicada. Não é certa. E não é sequer bem verdade, ele apanhou a cena por alto e inventou um bocado. Foi uma coisa que eu disse depois de a entrevista acabar… O futuro só Deus sabe.

E quando vais começar a tocar o “Híbido”? Vens a Lisboa?

Sons como “Jesus Loves Me” tenho tocado nos últimos concertos. Mas a maioria vou começar agora. O primeiro concerto será em Lisboa. Não vou dizer o espaço porque ainda não ‘tá fechado. Também vou ao Porto. O álbum saiu agora, é deixar o pessoal absorver. Lá para final de Agosto, Setembro, começamos.