Até a chuva e o vento atenuaram, aproximada a hora de Aline Frazão entrar na sala principal do teatro lisboeta. Em qualquer outra sala um começo às 21h seria apenas uma metáfora, todavia ontem, nem quinze minutos teriam passado quando a lindíssima Aline entrou em palco. E, antes de tudo e mais nada, um bem-haja para o São Luíz. Onde um atendimento extremamente profissional coexiste com simpatia e prestabilidade raras. Casa que esgotou para receber a talentosa compositora e intérprete angolana.
De guitarra acústica empunhada como é habitual, acompanhada por Marco Pombinho no piano e fender rhodes, o italiano Francesco Valente no baixo e contrabaixo, seguidos por Marcos Alves na bateria e percussão. Os primeiros timbres ecoam nas “Paredes do Mayombe”, primeira faixa de “Movimento” que inevitavelmente faz transportar até às montanhosas descrições de Pepetela. Forma-se um cenário de noances poéticas envolto na enebriante voz de Aline Frazão, num embalo de musicalidade que culmina quase em sonho pela bela e simples cenografia com luzes permutando temperaturas. Algo próximo da magia. As reacções eram parcas, não por nenhuma outra razão que não essa.
O seu mais recente registo continuou na linha da frente do setlist em “Desassossego”, onde a voz chora um fado triste e simultâneamente reconfortante (é isso possível?). Música que anteveio igualmente a primeira incursão ao segundo registo da cantora, editado em 2011, com a homónima “Clave Bantu”. Disco em que a sua voz se fundiu na literatura de Ondjaki e José Eduardo Agualusa, dois dos seus mais altos expoentes no panorâma africano actual. Sendo que, na noite de ontem, o último se transformou no “Céu Da Tua Boca”, saltitante e despreocupada. Aline Frazão é uma cantora náta. Tão cativante como o som é a expressividade e visível descontracção com que o emite. Dança na sombra, enquanto Francesco Valente protagoniza um sólo de baixo embriagado de rum caribenho.
De seguida surge João Pires em palco, na guitarra acústica e no cavaquinho, oferecendo o tema “Navega”, onde o ritmo é a ondulação calma no areal e a voz de Aline um sol quente e sem radiações. Depois de “Ronda” pergunta “como estão?”, alguém grita “és linda!”. Verdade, mas igualmente linda é “Primeiro Mundo” – música de intervenção inteligente e mordaz – interpretada com força e emoção nas palavras, onde no final, dá um enfâse quase à rapper nos versos: “não há diferença entre nós, é a mesma essência, se a minha liberdade não existe a tua é só aparência”. A belíssima “Oriente” sucede-lhe, terna e envolvente, jazz e bossa nova remexidos em balanço africano. Dedicada às pessoas que “muitas vezes sabem melhor o nosso caminho que nós próprios”, evocando nesse sentido a vida incerta do mundo da música. Mas tal é, sem dúvida, “O Que Ela Quer” – canção que se seguiu e encontrou na plateia as mais abundantes reacções e coros da noite.
O ambiente permaneceu entusiasta em “Tanto”, o single do seu mais recente álbum que se insurge como um retrato do paradoxo de realidades que é Luanda e onde a interpretação de Aline Frazão nos deixou, como costume, “na embriaguez do encanto”. No falso final o ritmo acelera-se e expande-se na “Nossa Festa”, que se repercute depois numa contínua e forte ovação que só termina quando regressa, acompanhada pela guitarra. Sozinha, preenche o palco e a sala inteira com a voz morna e salgada numa “Assinatura de Sal”, faixa do seu primeiro registo, “A Minha Embala”, de 2009. Já com os músicos em palco, o final é com “Movimento”, com uma “música perigosa, muito perigosa”. Foi com a poderosa “Na Boca De Angola”, que se encerraram as mandíbulas da actuação. Mas docemente, muito docemente.