Há alinhamentos que apenas imaginamos, mas que os sabemos perfeitos — falham aspectos cronológicos, geográficos, polítcos, etc. Pensar em Sleep a abrir para os Black Sabbath com uma banda de rock n’roll a tocar pelo meio para manter a multidão quente é no mínimo comovente, e francamente impossível. O universo manifestou-se no sentido de comunicar a Makoto Kawabata, druida-mor do monstro alienígena que são os Acid Mothers Temple, que deveria levar o psicadélico até aos Black Sabbath. Alguém sugeriu que o “Holy Mountain” fosse servido enquanto aperitivo pelas mãos dos Aspen e pediu aos Valient Thorr um show de strip para transição. Eis uma terça-feira de luxo no Porto, a encenação do sonho molhado de muitos.
Tudo começou com Holy Mountain ao som de “Holy Mountain” pelas mãos dos montanhosos Aspen. Com a voz de Cisneros a ficar órfã neste concerto, mantendo-se fiel ao que os barcelenses fazem, “Inside the Sun”, “The Druid” e “Aquarian” , depois de uma “Nain’s Baptism” estrategicamente introdutória, arrancaram os primeiros cabeceamentos de uma sala injustamente ainda a meio gás.
Os Barcelenses, de quem se esperava uma interpretação rock, foram, felizmente, ao pormenor de não se desleixarem no baixo e na bateria, elementos essenciais dos Sleep — ou não fossem Al Cisneros o baixista da banda e Chris Hakius o homem das cavernas responsável por uma tarola galopante e inconfundível. Os Sleep não estiveram em palco, e provavelmente também não se iam envergonhar por não serem eles a tocar as suas próprias músicas. Houve peso e groove apimentados pelo filme Holy Mountain, a ser projectado nas costas do trio. A fechar, a pesadíssima “From Beyond” seguiu-se ao “hit single” “Dragonaut” e ficaram feitas as honras aos doomsters mais dopados da história.
Valient Himself não se coíbe de entrar em palco em grande pompa. Ao som de “Also Sprach Zarathustra”, de Richard Strauss, o norte-americano sobe ao palco de capa verde sobre os ombros, obriga o público a aproximar-se e começa a descarga rock que todos esperávamos. Durante quase uma hora, houve pagode americano, com vídeos de motocross nas projecções a dar o ambiente para o cabedal que estávamos todos convidados a envergar e a despir de imediato (tal era o calor, tal era o rebuliço). São assim os Valient Thorr: uma máquina de rock incansável com um anafado Himself a exceder todas as expectativas para alguém que enverga uma barriga tão proeminente — como daria a entender, aquela barriga é sinal de felicidade líquida (há quem lhe chame outras coisas) acumulada ao longo de anos na estrada. Um trabalho iniciado há muito que certamente não ficou em segundo plano no Porto, a julgar pela cerveja que se foi bebendo em palco e incentivada a beber fora dele.
A pausa para os Acid Mothers Temple impunha-se. Já se tinha como certa a viagem ao universo que comunica através do receptor Makoto Kawabata e sabia-se à partida que a nave espacial a utilizar seria a dos Black Sabbath. Robusta, revista de metal e montada em alucinogénicos, a partida deu-se logo com um(a) cambaleante “Iron Man”, vigoroso em instrumentos, mas frágil na voz do baixista Tabata Mitsuru. Passe-se o ambiente karaoke da voz — ou carregue-se a voz de reverb para disfarçar — e tudo nos Acid Mothers Temple acabaria a fazer jus ao que se esperava de uns Black Sabbath incontidos.
“Sweet Leaf” como mood-setter definitivo, com toda a camada instrumental a sobrepor-se ao som de há quarenta anos dos britânicos. Foi de ora em diante que se percebeu: no Japão, a tecnologia é de ponta e os resultados não se ficam atrás. Sentiu-se o fumo da erva a adocicar-nos o paladar e a desenhar sorrisos; sentiu-se o instinto belicoso a encher peitos de coragem para enfrentar “War Pigs”; e os presentes ainda se perderam em “Paranoid” e nos estonteantes desvios de órbita que os nipónicos protagonizavam.
Era esse mesmo, de resto, o detalhe que faria a diferença na interpretação dos Acid Mothers Temple: para além de dar aos Black Sabbath o corpo que a música deles precisa para provar que são, ainda e sempre, um dos eternos colossos do rock e do metal, acrescentaram os pós espaciais tão típicos do combo. Com Makoto a conduzir a nave por alguns pregos nas transições, na orgânica dos solos mais dotos de feeling que de técnica, a stratsoaria estridente de distorções e delays, mas sempre psicadélica no extremo das frequências altas e dos whammies gritantes, até que completamente estraçalhada bem no centro do palco. Hiroshi Higashi, nos sintetizadores, encarnou o papel de feiticeiro e assumiu as suas responsabilidades de forma exemplar, ora não deixando os Acid Mothers Temple mergulhar completamente nos Masters of Reality, ora dando o toque de blues certo com a harmónica.
Os Acid Mothers Temple podem não ser os Black Sabbath, podem não ter o Ozzie a cantar, mas não estão, de todo, longe de ser os melhores Black Sabbath que alguma vez veremos ao vivo. A guitarra de Makoto Kawabata não verá absolutamente mais nada parecido, pelo menos.